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Lendo e escrevendo

Lendo e escrevendo

Encontros

11.09.21, Almerinda

A Guerra não tem Rosto de Mulher.jpg

Encontros

Ler é uma das minhas rotinas enquanto tomo o pequeno-almoço. Geralmente folheio o jornal, leio uma crónica da Visão, acompanho o Expresso curto, sempre coisas breves. Hoje dei com uma revista antiga do Expresso (Março de 2017), um daqueles muitos jornais que nunca mais passam para a reciclagem, uma daquelas pedras no sapato aqui na nossa casa… Felizmente, esta revista ainda por cá andava e deu-me a oportunidade de ler a entrevista que José Mário Silva fez a Svetlana Alexievich em Minsk. Só conhecia o nome, sabia que tinha recebido o Prémio Nobel da Literatura em 2015, mas fiquei fascinada com a entrevista e logo anotei mais uns títulos para a lista interminável de livros-desejo.

E como hoje tinha intenção de me encontrar com Ana Cristina Silva que não via desde antes da pandemia, decidi que esta minha terceira e última ida à Feira do Livro neste 2021 seria não só o encontro presencial com a escritora portuguesa que muito admiro, mas tentar também encontrar-me com Svetlana. A escritora bielorrussa estava presente com vários livros e decidi-me por este que folheei e que deve ser extraordinário. O título e o que apreendi dele pela entrevista é um dos seus cinco livros corais, cheios de vozes numa tentativa de captar a “substância do tempo” e faz parte do projecto literário Vozes da Utopia, tendo sido publicado originalmente em 1985 e reescrito em 2002 quando a autora introduziu novos excertos que a censura anteriormente tinha cortado.

Um dia com bons encontros.

Eliete - A Vida Normal

03.09.21, Almerinda

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Eliete – A Vida Normal, Dulce Maria Cardoso, 2018

“Todas as famílias, as felizes e as infelizes, tinham segredos, todas as famílias sabiam que a verdade devia ser desprezada como qualquer outra minudência que amesquinhe a vida”. (pág. 226).

Esta citação é, quanto a mim, a chave deste “Eliete - A Vida Normal” (I Parte). Um livro “circular” em que as pontas da última e da primeira páginas se ligam, nos abanam e nos deixam na ansiedade duma Eliete Parte II, que se gostaria de ter logo ali à mão.

O final deixou-me atarantada. Dulce Maria Cardoso, que só conhecia das crónicas da «Visão», tem uma capacidade prodigiosa de agarrar quem a lê e de surpreender pelo inesperado, pela escrita forte e desabrida. Eliete, a avó, a mamã, o Jorge, a Inês, a Márcia, a Milena, o Sr. Pereira, a Mónica, o Duarte … surgem-nos ao longo de cerca de trezentas páginas com a sua humanidade, sem artifícios nem maquilhagem. É a vida comezinha, é o dia-a-dia, com o sabor que cada idade tem, com o cansaço que os anos trazem, com a indiferença do estar mas não estar, com a sensação de que se perdeu o pé, com a constatação de que as recordações jazem nas tralhas da arrecadação. A vida passou a ser vivida através do facebook ou do Instagram, caçam-se pokémons ou homens no Tinder, em vez de sentimentos há emojis e likes, o virtual substituiu o real. Eliete, uma mulher na casa dos quarenta, com um curso de Relações Internacionais que nunca lhe serviu para nada, com uma formação de seis meses para guia e intérprete a preparar um futuro no desemprego e actualmente vendedora de imóveis é uma mulher profundamente insatisfeita com a sua vida, sente-se muito só e estranha, como se vivesse com estranhos que são afinal as pessoas que mais ama, mas que não conseguem expressar um afecto que existiu, mas que o tempo e a idade fizeram esmorecer.

O país também vai mudando. Da euforia dos dinheiros da CEE, passa-se à depressão e de novo à esperança. Os pontos altos no orgulho lusitano – Expo 98, Euro 2004, campeões europeus de futebol – dão lugar à depressão com a intervenção da troika. Também no mundo, o inimaginável acontece: Trump é eleito. Tudo isto vai surgindo de forma natural na escrita torrencial de Dulce Maria Cardoso, como pano de fundo da sociedade em que Eliete respira. As pequenas e as grandes coisas ligam-se umas às outras sem interrupções, nem pausas, duma forma natural e muitas vezes divertida. Até a decadência da avó com doença de Alzheimer é apresentada sem sentimentalismos nem eufemismos.

As pontas soltas que se unem e de que falei ao início começam no momento em que a avó tem o primeiro episódio que a leva ao hospital e o temporal que apanha Eliete na casa da avó. O que irá acontecer?

 

2 de Setembro de 2021