Almoço de Domingo, José Luís Peixoto, 2021
Um livro especial, que me foi oferecido no dia de anos. Em dose dupla, por gente querida, que sabe como valorizo os almoços de domingo com a família, os quais nos têm sido vedados nestes tempos de pandemia.
O romance, repartido em três dias, é um mosaico de momentos que se entrelaçam, da história do nosso país, de recordações da infância, do Rui menino quando ia levar os avios de carne da salsicharia da mãe. O meu Rui, o seu Rui, o senhor Rui, o senhor comendador. A escola e o amigo mais sincero, a tropa, Alice a companheira de toda uma vida, os vários cargos na Câmara, o convite a Marcelo Caetano para as festas de Campo Maior, a marca Delta, a inauguração da ponte sobre o Tejo, o almoço de cozido de grão oferecido a Mário Soares e Felipe González. Timor e Angola onde vai comprar o café que depois será transformado e comercializado, Inglaterra onde irá para tentar salvar a irmã Clarisse, as travessias clandestinas através da fronteira evitando o encontro com os carabineiros, a detenção em Badajoz.
São retalhos de uma vida que vão surgindo sem ordem cronológica, antes iluminando marcos significativos de nove décadas de existência. Uma vida cheia de peripécias, de muito trabalho, dedicação e engenho. Uma vida em que os alicerces – o tio Joaquim, a mãe, o pai, o irmão António e as irmãs Clarisse e Cremilde – nunca são esquecidos. Eles estão presentes naquele almoço de domingo e perpetuar-se-ão nos filhos, nas noras, nos netos e bisnetos, mesmo quando o senhor Rui já tiver morrido. Porque este romance fala da vida, da morte, das alegrias, dos nascimentos, das perdas, das dores do envelhecimento e também de Campo Maior. Da fronteira entre os vivos e os mortos e da fronteira que separa Portugal de Espanha ou Campo Maior de Badajoz. Dessa linha afinal tão ténue.
Este “Almoço de Domingo”, memória de tantos almoços de domingo, corresponde ao 28 de Março de 2021, dia do 90º aniversário do senhor Rui. Sendo a última parte deste romance biográfico, é antecedido dos dias 26 e 27 de Março, mas aqui não há pandemia nem qualquer referência a ela. Antes a celebração da amizade, do reconhecimento, da gratidão por uma vida plena, em que a família e toda uma comunidade se juntam para saudar um homem generoso, exemplar. A família e Campo Maior constituem uma unidade. São uma e a mesma coisa.
“Quando acumulamos suficiente tempo, os domingos transformam-se num período da vida. Recordamos os domingos como uma unidade, anos inteiros só de domingos, estações inteiras compostas apenas por domingos: os domingos do verão, os domingos do outono, todos os domingos do inverno e, de novo, as promessas feitas pelos domingos da primavera. Foram dias separados por semanas, antecedidos por sábados com ilusões próprias, sucedidos por segundas-feiras com agendas precisas, tarefas fatais que exigiam ser feitas, mas tudo se dissipa até ficar apenas uma amálgama de domingos. Ao serem vividos, transformaram-se nessa amálgama, como um almoço de domingo infinito, a crescer permanentemente a partir do seu interior.
Entra a minha sogra com a sua arte, travessa de bacalhau no forno, prato perfeito para este momento. Logo a seguir, a sua filha, minha mulher, Alice, traz os talheres com que vamos servir-nos. Estamos prontos, habitamos esta hora certa, tentaremos repeti-la muitas vezes ao longo da vida. O nosso contentamento mistura-se sobre a mesa, o meu filho estica o braço para chegar ao pão, a minha filha leva um copo de laranjada aos lábios, a minha mulher organiza-nos, a minha sogra sorri, está submersa neste instante, inspira este ar.
Somos uma imagem parada. Existe a passagem dos segundos, minutos talvez, existem os gestos, mas somos uma imagem parada, enche todo o tempo que possuímos.”(págs. 106 e 107)
3 de Agosto de 2021