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Lendo e escrevendo

Lendo e escrevendo

Hoje não havia jacarandás em flor...

28.08.21, Almerinda

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Hoje não havia jacarandás em flor…

Hoje não havia jacarandás em flor. Mas eles continuam lá. Muito calor. Muita gente. Livros ao alcance das mãos, a serem folheados, em sacos, livros em promoção, filas para pagar livros, filas para autógrafos. Há quem procure pechinchas, quem tente encontrar aquele livro, quem se socorra da lista de livros a comprar e que vai crescendo… quem queira simplesmente desfrutar da alegria do encontro com os livros a céu aberto.

Este ano já lá passei duas vezes, afinal de contas estava com um ano em atraso, porque em 2020 não ousei visitar a Feira do Livro.

Não sei se foi das máscaras, mas não encontrei ninguém conhecido. Conhecidos mesmo só os/as autores/as dos livros que comprei. A Patti Smith que conheço da música vai ser uma estreia enquanto escritora. Os outros já são meus conhecidos, mas como há sempre tanto neles a descobrir, trouxe mais uns livros que não sei onde vão caber, porque espaço nas estantes já não há.

Até dia 12 de Setembro, não digo que não volte lá. Mesmo sabendo que jacarandás em flor, só para o ano.

Três Verões, Julia Glass

27.08.21, Almerinda

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Publico aqui o que escrevi há 8 anos, sobre uma das minhas leituras desse Verão de 2013
 
“Três Verões”, Julia Glass, 2002
O que nos faz gostar de um livro? O que nos faz lê-lo até ao fim?
Várias são as respostas possíveis, para mim neste caso, a escrita fluente, a proximidade e a pertinência de certas situações, a mestria da autora em manter o/a leitor/a ligado/a, mas também as referências às cidades ou locais onde a acção se passa, a presença da natureza, a riqueza e complexidade das diversas personagens deste livro com cerca de cinco centenas de páginas.
Os temas da morte, da “última morada”, da homossexualidade, da eutanásia, dos primeiros anos do surgimento da sida, da fertilidade ou da sua ausência, da inseminação artificial, o dar a vida e também o dar a morte, a solidariedade, a gravidez desejada e o aborto surgem ao longo do romance e colocam às personagens e ao/à leitor/a perplexidades, dúvidas e a necessidade de fazer escolhas. Foi tudo isto que me fez ficar ligada a este livro que uma amiga me havia emprestado há já algum tempo.
A acção desenvolve-se ao longo de três períodos diferentes, nos meses de Junho de 1989, 1995 e 1999. Na primeira parte, Paul McLeod na condição de recém-viúvo, parte numa excursão até à Grécia e às suas famosas ilhas. Mas é sobretudo através dele e das suas memórias, enquanto narrador, que entramos na sua vida na Escócia, casado com uma mulher independente, criadora e treinadora de cães pastores (collies) e pai de três rapazes. Mas a Grécia e sobretudo a ilha de Naxos fascinaram-no de tal modo que passou a ser local de posteriores viagens de férias, tendo acabado por aí falecer num desses verões.
O reencontro dos três filhos – Fenno e os gémeos David e Dennis - na Escócia, na segunda parte do livro, por ocasião da morte e funeral do pai, desvenda as personalidades das personagens e das famílias que entretanto se constituíram e é o ponto de partida para o enredo do livro. Fenno, o mais velho, há anos a residir em Nova York, homossexual, é o narrador e também a personagem central e mais marcante em todo o livro, a quem são colocados os desafios mais difíceis, desde ajudar o seu amigo Mal a morrer, até ser dador de esperma que permita a gravidez da mulher do seu irmão David.
Embora a estrutura do romance seja feita de cenas e capítulos que decorrem em momentos diferentes, em que somos levados a andar para a frente e para trás no tempo, a leitura é um puzzle que encaixa na perfeição. Para além dos temas tão actuais a que me referi anteriormente, a autora consegue transmitir-nos o seu amor pela natureza e ao nomear as flores das paisagens da Escócia – peónias, dedaleiras, íris, lilases, rosas, alfazema, gardénias, jacintos – é toda uma sinfonia de cheiros, de perfumes, de cores, um convite à leitura deste livro com todos os sentidos. Quase no final, o remate perfeito com a referência a “A Pastoral” de Beethoven.
Termino com a indicação de que este livro foi o vencedor do National Book Award.
11 Agosto 2013

A Geração da Utopia, Pepetela

24.08.21, Almerinda

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A Geração da Utopia, Pepetela, 1992

Pepetela e este livro foram para mim uma revelação maravilhosa. Cada dia que passa percebemos que há tanto para descobrir e lamentamos ter conhecido alguns escritores num tempo já tão avançado da nossa idade. Mas, mesmo tarde, foi mais uma bela descoberta e mais vale tarde do que nunca.

O livro começa com “Portanto, …” e termina com “… portanto.”Como é óbvio, não pode haver epílogo nem ponto final para uma estória que começa por portanto.” Esta frase que põe fim ao romance, aponta, em minha opinião, para o facto de que todas as desilusões pelo derrubar das nossas utopias são sempre superadas pelo devir, pela esperança da concretização dos nossos sonhos, nem que seja na geração ou nas gerações que nos seguirão e que terão como nós utopias, sonhos, tudo afinal que faz a humanidade evoluir e aspirar à felicidade.

Esta geração da utopia que aqui nos é retratada é a geração dos jovens universitários angolanos que viviam em Lisboa na década de 60 do século passado e que conviviam, namoravam e se organizavam em torno de um ideal de independência e libertação do colonialismo. Estando longe de Angola na fase inicial da guerra, numa Lisboa insegura pela presença da polícia política que vigiava tudo e todos, os jovens angolanos e africanos vivenciaram a rejeição dos portugueses que os olhavam com suspeição, instrumentalizados pela propaganda salazarista do “Angola é nossa!”, que os encaravam como inimigos. “ Sara era branca, e portanto à partida, considerada uma boa portuguesa. Os negros e mulatos eram quase apontados a dedo, nos cafés, nos cinemas, na rua. Traziam na cara os estigmas que os denunciavam como potenciais terroristas.” Por outro lado, embora sedentos de viverem num país livre do poder colonial, viviam a contradição e o receio dos métodos da UPA que recusavam e começavam a contactar e organizar-se em movimentos novos com ideais de liberdade, justiça e igualdade.

O romance decorre em quatro momentos diferentes. Em 1961, em Lisboa, no início da guerra colonial. Em 1972, na mata angolana, os jovens universitários angolanos que haviam fugido para Paris, são agora os guerrilheiros cansados da guerra, frustrados, divididos por querelas, tribalismo e regionalismos, pois, como diz Vítor “O tempo do romantismo morreu.”. Em 1982, terminada a guerra contra o regime colonial, os partidos digladiam-se em Angola e a grande maioria da população e os deslocados da guerra vivem miseravelmente – “… o passado de quimeras trouxe este presente absurdo”. Aníbal, cujo nome de guerra era Sábio, e que se pensava ter morrido, vive sozinho num morro junto a uma praia, vivendo do peixe que caça, regando a sua mangueira onde sente que está o espírito de Mussole e com a ideia fixa de enfrentar um polvo gigante escondido numa gruta. “Eu morri e desencantei-me” assim se confessa Aníbal, aquele que era o mais politizado do grupo da Casa dos Estudantes do Império e que se afastou da política oficial por rejeitar o oportunismo e a corrupção em que muitos dos seus antigos camaradas e amigos caíram. Finalmente, em 1991, passados 30 anos de guerra, é o tempo dos negócios, das negociatas, das ligações entre a política e os negócios. Muitos dos vícios do colonialismo surgem às mãos dos que antes lutaram contra ele e o descrédito dos políticos e da política impõem-se entre o povo. O terreno está fértil para todas as manigâncias e traficâncias, para os charlatães e profetas da felicidade, a triste saída quando o povo já não tem mais nada a que se possa agarrar.

É um livro desencantado, com uma denúncia feroz aos jogos de poder e à burocracia instalada que tudo mina, embora, como disse no início, o autor deixe em aberto a esperança na humanidade e num futuro melhor e mais justo para todos. Gostei imenso da escrita poética de Pepetela, utilizando uma linguagem sensitiva, rica nas descrições, coloquial e com regionalismos cujo significado nos remete para o glossário no fim do livro. Gostaria de assinalar cenas inesquecíveis e metafóricas como a caça do bambi fêmea grávida que resiste até ao fim e a luta contra os nossos medos mais profundos empreendida por Aníbal na cena da caça ao polvo.

Se a primeira parte do livro, o período dos anos 60 me fazem lembrar os meus tempos de estudante universitária e da luta estudantil contra o regime opressor que existia em Portugal, o capítulo “O polvo – Abril de 1982” foi, sem dúvida, aquele que mais apreciei em todo o livro, pela força e pelas descrições de imensa beleza e realismo.

Mouriscas, 16 de Agosto de 2021

Almerinda Bento

 

Almoço de Domingo, José Luís Peixoto

05.08.21, Almerinda

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Almoço de Domingo, José Luís Peixoto, 2021 

Um livro especial, que me foi oferecido no dia de anos. Em dose dupla, por gente querida, que sabe como valorizo os almoços de domingo com a família, os quais nos têm sido vedados nestes tempos de pandemia.

O romance, repartido em três dias, é um mosaico de momentos que se entrelaçam, da história do nosso país, de recordações da infância, do Rui menino quando ia levar os avios de carne da salsicharia da mãe. O meu Rui, o seu Rui, o senhor Rui, o senhor comendador. A escola e o amigo mais sincero, a tropa, Alice a companheira de toda uma vida, os vários cargos na Câmara, o convite a Marcelo Caetano para as festas de Campo Maior, a marca Delta, a inauguração da ponte sobre o Tejo, o almoço de cozido de grão oferecido a Mário Soares e Felipe González. Timor e Angola onde vai comprar o café que depois será transformado e comercializado, Inglaterra onde irá para tentar salvar a irmã Clarisse, as travessias clandestinas através da fronteira evitando o encontro com os carabineiros, a detenção em Badajoz.

São retalhos de uma vida que vão surgindo sem ordem cronológica, antes iluminando marcos significativos de nove décadas de existência. Uma vida cheia de peripécias, de muito trabalho, dedicação e engenho. Uma vida em que os alicerces – o tio Joaquim, a mãe, o pai, o irmão António e as irmãs Clarisse e Cremilde – nunca são esquecidos. Eles estão presentes naquele almoço de domingo e perpetuar-se-ão nos filhos, nas noras, nos netos e bisnetos, mesmo quando o senhor Rui já tiver morrido. Porque este romance fala da vida, da morte, das alegrias, dos nascimentos, das perdas, das dores do envelhecimento e também de Campo Maior. Da fronteira entre os vivos e os mortos e da fronteira que separa Portugal de Espanha ou Campo Maior de Badajoz. Dessa linha afinal tão ténue.

Este “Almoço de Domingo”, memória de tantos almoços de domingo, corresponde ao 28 de Março de 2021, dia do 90º aniversário do senhor Rui. Sendo a última parte deste romance biográfico, é antecedido dos dias 26 e 27 de Março, mas aqui não há pandemia nem qualquer referência a ela. Antes a celebração da amizade, do reconhecimento, da gratidão por uma vida plena, em que a família e toda uma comunidade se juntam para saudar um homem generoso, exemplar. A família e Campo Maior constituem uma unidade. São uma e a mesma coisa.

“Quando acumulamos suficiente tempo, os domingos transformam-se num período da vida. Recordamos os domingos como uma unidade, anos inteiros só de domingos, estações inteiras compostas apenas por domingos: os domingos do verão, os domingos do outono, todos os domingos do inverno e, de novo, as promessas feitas pelos domingos da primavera. Foram dias separados por semanas, antecedidos por sábados com ilusões próprias, sucedidos por segundas-feiras com agendas precisas, tarefas fatais que exigiam ser feitas, mas tudo se dissipa até ficar apenas uma amálgama de domingos. Ao serem vividos, transformaram-se nessa amálgama, como um almoço de domingo infinito, a crescer permanentemente a partir do seu interior.

Entra a minha sogra com a sua arte, travessa de bacalhau no forno, prato perfeito para este momento. Logo a seguir, a sua filha, minha mulher, Alice, traz os talheres com que vamos servir-nos. Estamos prontos, habitamos esta hora certa, tentaremos repeti-la muitas vezes ao longo da vida. O nosso contentamento mistura-se sobre a mesa, o meu filho estica o braço para chegar ao pão, a minha filha leva um copo de laranjada aos lábios, a minha mulher organiza-nos, a minha sogra sorri, está submersa neste instante, inspira este ar.

Somos uma imagem parada. Existe a passagem dos segundos, minutos talvez, existem os gestos, mas somos uma imagem parada, enche todo o tempo que possuímos.”(págs. 106 e 107)

3 de Agosto de 2021