Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Lendo e escrevendo

Lendo e escrevendo

Já fizeste a mala?

30.07.21, Almerinda

20210730_170659.jpg

Estou a fazer, mas este ano não vou ser tão ambiciosa como em 2020. 

Eu sei que eles não se importam de viajar e que adoram que eu viaje com eles. Mesmo se voltarem sem terem sido abertos, sabem que não vão ficar esquecidos e que o seu dia há-de chegar. Sinto saudades de viajar com Paul Théroux, mas decidi que estes também não podiam esperar mais e que neste Agosto vão ser os meus companheiros de viagem. 

Os desenhos têm ficado parados e eu sei como tenho dificuldade de conciliar as duas actividades. Na bagagem também irá outro material. Logo se verá se serão as aguarelas ou os pastéis, mas será sempre desenho de observação e no campo o manancial de motivos é infinito. 

Agora que estou na minha estação preferida, ambiciono sempre agarrar com as duas mãos o dia, a luz, o calor, a calma, o silêncio. 

A todos e todas que vão seguindo estes meus escritos sem prazo nem obrigação, com a descontracção do tempo que se vive e que corre veloz, boas férias. Dias felizes. 

O Nervo Óptico, Maria Gaínza

25.07.21, Almerinda

O Nervo Óptico.jpg

Este texto tem três anos. 

O Nervo Óptico, María Gainza, 2014

Tive com este livro uma experiência que nunca tivera antes. Li-o e quando cheguei ao fim decidi voltar a lê-lo, desta vez com mais vagar, pesquisando os pintores e os quadros que são nomeados ao longo do livro, como se eu também acompanhasse a narradora/autora nas suas deambulações pelos museus, galerias e salas onde ela encontra os seus quadros favoritos ou aqueles que de alguma forma a levam “a sentir aquela agitação que alguns descrevem como borboletas no estômago…”

Também a capa me atraiu e me criou repulsa. A imagem é sugestiva e corresponde à imagem de uma mulher sozinha numa sala de um museu a observar aquele quadro especial e único. Mas o título tal como está grafado, numa subserviência ao novo acordo ortográfico é um disparate. “O Nervo Ótico” para traduzir “El Nervio Óptico”! O Dicionário da Língua Portuguesa distingue de forma clara: ótico= do ouvido; relativo ao ouvido e óptico= referente à óptica ou à vista; visual.

Costumo ignorar as sinopses na contracapa dos livros, mas esta é perfeita, sintética e muito completa, suficientemente sugestiva e não enganadora.

O livro é constituído por onze capítulos distintos em que a autora/narradora nos guia por momentos diversos da sua vida enquanto criança, jovem adolescente, adulta, desvendando-nos acontecimentos em que os pais, ou os irmãos, amigas/os, familiares, o marido ou ela própria são protagonistas. São quadros da sua vida que vai associando a quadros de pintores que ela visita em museus na Argentina ou noutras partes do mundo, alguns argentinos menos conhecidos, outros mais famosos. A sua formação em História da Arte permite-nos seguir pelo livro como se acompanhássemos uma guia em visita a um museu, enquanto nos convida a reflectir sobre temas tão diversos como os medos, a infância e a velhice, a fragilidade da vida, mas usando frequentemente um tom bem humorado.

Alguns breves traços desses capítulos:

Como para ela os museus são uma espécie de abrigo, pois “o meu instinto de sobrevivência leva-me sempre aos museus”, a recordação de um dia em que o ar da cidade de Buenos Aires ficou irrespirável devido à poluição e às cinzas de um fogo descontrolado, levou-a a tentar ver as telas de Candido López, um pintor argentino conhecido pelas cenas de guerra para quem o fogo e o fumo eram o mais difícil de pintar.

A partir da ideia presente em todo o livro de que “escrevemos uma coisa para contar outra”, a cena de caça pintada por Alfred de Dreux em que um cervo é encurralado por cães fá-la recordar a morte acidental de uma amiga apanhada por uma bala perdida.

Quando fala da amiga de infância - Alexia - a sua outra metade, uma espécie de “amiga genial”, cheia de contradições e de disfarces, associa-aà personalidade do japonês Fujita, o pintor de gatos, um verdadeiro camaleão ao longo da sua vida.

A atracção de Courbet pelo mar tempestuoso fá-la recordar uma prima invulgar também chamada María que um dia se afogou e que cobria as paredes do quarto com recortes azuis de revistas, numa colagem de mar revolto.

Os cavalos, um dos temas favoritos de Toulouse-Lautrec dão ensejo a que recorde um episódio vivido pela prima – Amalia – que conhecera duas japonesas a quem dera aulas de conversação em espanhol e que viviam numa casa encostada a um hipódromo. O traço comum entre a jovem japonesa e Toulouse-Lautrec foi o destino trágico de ambos cuja vida os marcou por uma deformidade física.

A referência a Rothko aparece em dois momentos: numa reprodução na sala de espera do consultório de um oftalmologista que a narradora consultou por causa do “olho louco” e numa imagem junto à cama do hospital onde o marido está internado. São apenas reproduções. Mas para ver Rothko, tem que se ver uma tela ao vivo, porque uma reprodução não consegue ter a força das cores vibrantes deste pintor. Artistas invulgares e que ganham notoriedade dificilmente conseguem deixar de ser alvo de críticas e de invejas, mas ao contrário de outros pintores que são engolidos pelo sistema, Rothko não se vendeu ao “dinheiro podre”.

A imagem do tio Marion fica associada à liberdade, ao desejo de romper com as prisões, com as convenções, mesmo quando nas visitas que faz aos sobrinhos lhes leva um colibri numagaiola, sabendo que dificilmente ele irá sobreviver. Com efeito, “encerrarias num frasco os raios de sol?”

 O medo de andar de avião, coisa que passou a ser persistente com a idade, leva a narradora a falar sobre a arte de Henri Rousseau e de como os balões de ar quente o fascinaram e em muitas das suas pinturas o céu é cortado por balões e outras máquinas de voar.

María Gainza fala da sensação que teve ao olhar “La Niña Sentada” uma pequena tela de Schiavoni e reconhecer-se nesse quadro quando era criança. Embora seja para ela um motivo de alegria rever-se naquele quadro, com a idade tem evitado visitar-se com frequência. O confronto com o que fomos e o que somos nem sempre é feliz!

O último capítulo, episódio, conto… é ensejo para falar da pintura de El Greco, pintor cuja obra ela viunuma visita que fez ao irmão mais velho que vive nos Estados Unidos. Um irmão com quem sempre teve uma relação difícil. Anos mais tarde, a família recebeu a notícia do seu falecimento repentino. Também um dia, a autora se vê confrontada com um tumor que a vai pôr em contacto com “um grupo de iluminados que vem diariamente fazer rádio” e parece que há em todos eles uma tranqulidade, uma capacidade de viver sem ansiedade. Cito as frases com que termina este livro diferente, especial: “Sinto uma suave felicidade no cair da neve, felicidade poética, acho que é assim que dizem. Daria um braço para me lembrar de quem lhe chamou assim.”

24 de Julho 2018

Casa da Malta, Fernando Namora

21.07.21, Almerinda

Casa da Malta.jpg

Casa da Malta, Fernando Namora, 1945

Em boa hora, decidi, no início deste ano, ir buscar à estante livros que preguiçosamente vão sendo esquecidos e passados à frente pelas novidades. Este foi um livro que me foi oferecido em 1988 e que só agora li. É um livrinho que se lê depressa e que tem a vantagem de ser precedido de um excelente prefácio de uma edição revista pelo autor, escrito em 1961, que nos ajuda a compreender ainda melhor esta novela de Fernando Namora, a segunda obra da sua autoria. Jovem médico, desterrado numa aldeia, “Havia em frente do meu consultório um pequeno adro e nele um casebre meio derruído, sem dono, ou assim poderia imaginá-lo, pois quem o habitava era gente erradia que vinha e partia sem se saber quando…. A malta”. Como ele explica, no seu prefácio, “O livro já existia dentro de mim, naquele gosto intenso de um fruto saboreado antes de o colhermos da árvore, de tanto lhe anteciparmos o paladar, quando, certa tarde (conheceis as sestas imóveis da aldeia, a modorra que, ou nos sepulta, ou nos obriga a fendê-la com um berro de socorro?), a aventura começou: oito dias de trabalho febril, o único livro de ficção que, até hoje, escrevi de rajada. E, todavia, é de todos eles o mais tranquilo.”

Esta novela é constituída por seis capítulos que contam histórias de pessoas que passam por aquela “espécie de saguão” abandonado, onde pernoitam malteses, vagabundos, ciganos. Os de “lá de fora” olhavam-nos com desprezo, “uns leprosos”, “abriam fossos de ódio e de repulsa”, mas afinal quem eram afinal esses “estranhos”? Abílio que um dia partira a correr mundo para fugir à fome e que agora regressava cheio de saudades da sua vila? Um grupo de ratinhos a caminho da ceifa e que repartem a comida que levam para o caminho? A cigana em trabalho de parto? O Ricocas saído da choça para onde a justiça dos ricos o atirou por ter batido num polícia? O Troupas a quem o fogo tudo roubou. O Manel sem raízes e que quer seguir com os ratinhos, como se fossem a família que perdeu? A Carminda que só queria ter o filho em terra firme, longe do areal onde o marido montara o negócio? Ou Graça, a rapariga da mala, diferente de todos eles mas que fugia duma experiência de sedução, ciúme e violência? “Todos ali eram uns desgraçados! A desgraça os solidarizava, naquele calor instintivo e fraterno, como reses de um rebanho acossado pelos lobos. A desgraça os solidarizava, tal como eram, sem fingimentos.” Sentados à volta do lume, partilhando o pouco que tinham, naquela casa havia “uma solidariedade que os confundia e identificava.” Troupas, que ficou sem nada, emociona-se com o nascimento da criança e diz: “Hoje, estou contente com o mundo e não tenho nada na cabeça que seja das coisas feias que eu vivi. Nasceu uma criança e eu posso morrer: ela virá fazer a viagem por mim.”

O narrador, o escritor, o médico desenraizado está no meio daquela gente da casa da malta. É um deles. Solidariza-se com esse povo. Identifica-se com aquele “calor humano”. No prefácio desta edição revista pelo autor, Fernando Namora diz que abomina rótulos e clubismos, mas alude ao neo-realismo com que se identifica, não como moda, nem se submetendo a fórmulas ou cenários específicos. “A minha presença no neo-realismo não é a de quem adere, de quem se arregimentou”. A sua independência não quer dizer individualismo, nem solidão. “Os meus livros representam quase um itinerário de geografia humana, por mim percorrido; as andanças do homem explicam a do escritor.”

O que mais poderei dizer sobre este livro de Fernando Namora para além de o aconselhar? Ao livro e ao prefácio, uma interessante reflexão sobre a vida literária e sobre a profunda ligação da experiência literária com a sua experiência humana. É sempre bom conhecer ou voltar a ler os nossos escritores contemporâneos.

19 de Julho de 2021 

Rua de Paris em Dia de Chuva, Isabel Rio Novo

16.07.21, Almerinda

Rua de Paris.jpg

Rua de Paris em Dia de Chuva, Isabel Rio Novo, 2020

Este é o primeiro livro que leio de Isabel Rio Novo, um romance-paixão pelo pintor Gustave Caillebotte, a personagem central. Autora, Helena e Gustave são as três personagens que se encontram, que se fundem, que criam uma cumplicidade com o/a leitor/a, numa construção e numa teia de ligações e questionamentos.  

 A Autora, apaixonada pela figura e pela obra de Gustave Caillebotte, quer saber mais sobre ele. Servindo-se de documentos e da tese de uma historiadora de arte – Helena – vai recriando-os à sua maneira. Tal como António Gedeão escrevera num poema dedicado a Camões “Ao Luís Vaz, recordando o convívio da nossa mocidade”, ou Yourcenar e Adriano que estabelecem “um contacto ininterrupto”, também a Autora sente por Gustave Caillebotte aquilo a que chama “a ligação a alguém com quem nunca nos cruzámos.”

Gustave Caillebotte nasceu em 1848 e faleceu em 1894. Para além de pintor, foi mecenas, coleccionador de arte e de selos, velejador, eleito no Conselho Municipal da comuna onde viveu os seus últimos anos de vida, engenheiro naval, horticultor… Foi excelente em tudo a que se dedicou com paixão, não tendo exercido a carreira de direito correspondente aos estudos que seguiu quando jovem. A Autora faz-nos a genealogia de Gustave, retrocedendo ao bisavô e à Normandia natal. Descreve-nos a França e as suas enormes transformações ao longo da segunda metade do século XIX, fala-nos de Napoleão III, das suas ambições expansionistas com a invasão da Prússia e o desaire que resulta na capitulação, da experiência da Comuna de Paris; e da cidade de Paris que em duas décadas se transformou numa cidade limpa, arejada, ampla e moderna por obra do barão de Haussmann. Desde a construção do Louvre, às amplas avenidas, à Torre Eiffel, todo o progresso e os novos inventos da era industrial estavam patentes nas grandes Exposições Universais.

A situação privilegiada que herdou resultante do negócio dos têxteis da família, permitiu que o jovem estudante de pintura na Academia de Belas Artes, conseguisse, ao invés de outros pintores da época, ter uma vida desafogada e sem as angústias de não ter dinheiro para alimentar a família. Também na pintura os cânones estavam a ser postos em causa. Os pintores vinham para o exterior, queriam captar o momento, a transitoriedade da vida, as sensações produzidas pelas paisagens. Queriam sair do espartilho e da rigidez dos júris que seleccionavam as telas para o Salão Oficial. Organizam-se, discutem ideias, inovam na maneira de expor. Só no século seguinte os seus nomes passarão a ser conhecidos, mas não deixarão de pintar e de seguir as suas ideias, mesmo que tenham tido prejuízos, desaires, uma imprensa conservadora que os ignorava ou escarnecia apodando-os de “alienados”, ou “um grupo de infelizes atingidos pela loucura da ambição.” Era muito difícil para a elite instalada no Salão Oficial, para os críticos e jornalistas que lhes eram fiéis, verem um grupo de jovens pintores abanar o edifício em que estavam instalados. A persistência venceu, mas a capacidade financeira de Gustave Caillebotte para comprar algumas das suas telas, para pagar as rendas dos espaços alugados para as exposições, para pagar contas e dar dinheiro a alguns desses pintores seus amigos foi imprescindível para que o grupo não se desfizesse logo de início. Renoir, Manet, Monet, Pissarro, Degas, Mary Cassatt ou Berthe Morisot, que só mais tarde vieram a figurar como os grandes mestres do impressionismo, beneficiaram do mecenas Caillebotte, que sendo seu par na pintura, acabou por ficar praticamente esquecido como pintor impressionista com uma imensa quantidade de telas pintadas ao longo de toda a sua curta vida, reflectindo a sua vivência em Paris, em cenas familiares, em Argenteuil ou Petit Genevilliers.

Mas, como também já tentei aqui dizer, o romance é muito mais do que a vida do pintor. É o entrelaçar da vida de Gustave com a Autora como se os cerca de cento e cinquenta anos de vida que os separam não existissem. “ … é por isso que vale a pena escrever livros, para poder conversar à distância com aqueles que amamos e que não são do nosso tempo. Que triste e pobre seria a vida se as nossas afeições estivessem limitadas àqueles com quem nos cruzamos realmente. Que longos nos pesariam os dias se aqueles que morreram antes de nós estivessem mesmo ausentes.” Mais do que a cumplicidade entre eles, há um paralelismo na Autora que escreve e no pintor que pinta. A Autora escrevia como se tentasse desenhar, “buscando beleza nas ideias, nas construções, na melodia das palavras”. Quanto à figura de Helena é um enigma que fica para ser resolvido por quem ler este romance.

Este livro foi uma revelação para mim. A escrita de Isabel Rio Novo é bela e cuidada. A vida deste pintor impressionista, personagem multifacetada, que não se consegue encontrar nos livros de arte, como se não tivesse existido. Uma figura obscura, esquecida, invisibilizada e que Isabel Rio Novo nos quis dar a conhecer e a descobrir, talvez numa visita a uma ala dos impressionistas nalgum museu numa cidade da Europa ou dos Estados Unidos.

13 de Julho de 2021

 

 

A Rapariga de Auschwitz, Eva Schloss

05.07.21, Almerinda

A Rapariga de Auschwitz.jpeg

A Rapariga de Auschwitz, Eva Schloss com Karen Bartlett, 2013

Eva Schloss é uma sobrevivente de Auschwitz. No dia em que fez 15 anos, a casa onde estava escondida com a mãe em Amesterdão foi invadida pelos soldados das SS e deportada para Auschwitz. Na dedicatória de “A Rapariga de Auschwitz”(“After Auschwitz”), Eva Schloss escreve “Este livro é dedicado à memória das vítimas do Holocausto e do genocídio que não puderam contar as suas próprias histórias.” Hoje, com 92 anos, Eva Schloss deverá ser uma das raras sobreviventes desse momento infame da história da humanidade.

Logo no início do livro, Eva Schloss revela-nos que só em 1986, em Londres, aquando da primeira exposição itinerante sobre Anne Frank e o seu Diário, quando foi convidada a falar sobre a sua experiência no campo de concentração, se deu a grande mudança interior, o início da catarse que lhe permitiu descobrir o que tinha guardado dentro de si, aquilo que tentara esquecer e que era o fantasma que a traumatizava e que não a deixava viver plenamente. Depois do confronto com os seus demónios e de ter conseguido verbalizar em público a sua experiência traumática, o repto da amiga Anita “Acho que deverias escrever tudo isso”deu-lhe o impulso para ultrapassar a sua timidez e a descrença que a levava a questionar-se: “Será que alguém acharia que eu tinha algo de interessante para contar?” Os últimos capítulos do livro, em minha opinião demasiado longos e excessivamente repletos de pormenores, são a consequência dessa revelação pessoal, esse descobrir a capacidade de falar em público sendo uma pessoa que nunca antes o tinha feito, o potencial de chegar a públicos tão diversos como crianças em escolas, reclusas em estabelecimentos para delinquentes e perigosos assassinos, membros do Senado americano entre outros. “Contar a minha história era uma maneira de divulgar uma mensagem sobre o preconceito e a intolerância, mas também queria trabalhar com outras pessoas para construir algo que poderia durar mais do que as memórias de sobreviventes individuais.” Nas exposições itinerantes que fez em todo o Reino Unido, as palestras que deu, por ocasião do lançamento do seu livro sobre a experiência de Auschwitz, as representações teatrais em todo o mundo com a peça “E então vieram atrás de mim”, o seu empenho na Fundação Anne Frank no Reino Unido permitiram-lhe chegar a muita gente que pouco ou nada sabia sobre o Holocausto e sobre os perigos totalitários. Deu muito e recebeu muito em troca.

Eva era uma jovem vienense inserida numa família e numa infância felizes. Quando os alemães anexaram a Áustria em 1938 com o intuito de limpar Viena da “imundície das baratas” e o medo se instalou, Eva ainda não tinha consciência do que se passava. Só quando colegas da escola e antigos vizinhos antes amigos começaram a tornar-se hostis ela percebeu que algo de estranho estava a acontecer. Os avós e os tios foram viver para Inglaterra e o pai teve de abandonar o seu negócio e foi para a Holanda que então ainda era neutral. O reencontro de Eva, do irmão Heinz e da mãe com o pai em Amesterdão foi cheio de problemas e entraves burocráticos numa Europa cada vez mais subjugada ao poder alemão e em que o ódio aos judeus era cada dia mais avassalador. Embora vivendo em casas separadas em Amesterdão, Eva e a mãe e Heinz, o irmão e o pai vivem clandestinamente sempre com o terror das denúncias, das chantagens. Quando em Maio de 1944 foram denunciados e seguiram num vagão de transporte de animais, maioritariamente cheio de pessoas de etnia cigana a caminho de Auschwitz, a separação foi definitiva. Eva e a mãe encaminhadas para Birkenau, Heinz e o pai para Auschwitz.

Como se consegue sobreviver num campo de concentração? Lembro-me sempre do livro de Primo Levi “Se isto é um Homem” que li há anos. Eva teve sorte. Eva teve a mãe com ela. A mãe teve a sorte de no campo estar uma amiga, uma prisioneira judia que era enfermeira no hospital. Coisas tão simples como ter uma tigela para comer e beber pode ser a possibilidade de se sobreviver. Tudo dependia do humor dos guardas, duma ordem de Josef Mengele num sentido ou no seu contrário. Era a arbitrariedade total. No campo da morte, o sadismo, a fome, a pilhagem, as doenças, a exaustão, a imundície, os percevejos, os ratos, o frio eram os ingredientes de quem estava à espera a cada momento de ser seleccionado para o gaseamento.

Das 168 crianças que naquele terrível 19 de Maio de 1944 seguiram para Auschwitz, Eva foi uma das 7 crianças sobreviventes. Quando em Janeiro de 1945, as tropas russas libertam o campo de Auschwitz-Birkenau, a mãe de Eva hospitalizada é um destroço e é Eva que toma conta dela. O regresso atribulado e demorado através duma Europa destruída e caótica é tudo menos fácil. Os sentimentos de quem sobreviveu são contraditórios: culpa, desespero, autodesprezo, inutilidade, trauma profundo e depressão. Famílias destruídas, incerteza sobre quem morreu, quem conseguiu sobreviver. Eva nunca conseguiu superar o trauma de não mais poder estar com o seu Pappy e com Heinz e embora tendo tido a felicidade de sobreviver com a mãe e de se terem apoiado, a verdade é que na sua angústia o seu relacionamento com ela reflectiu a profunda depressão de uma sobrevivente do holocausto. “Estava viva, mas teria de reaprender a viver e a encontrar o meu lugar num mundo que muitas vezes se mostrava indiferente aos horrores que eu presenciara.”

Para além do seu papel de dar testemunho vivo da sua experiência como sobrevivente do holocausto, Eva Schloss neste “A Rapariga de Auschwitz” dá-nos um relato da sua vida nas décadas que se seguiram ao fim da guerra e que a ajudaram a reconstituir-se como ser humano a quem o pai fizera o sinal “Queixo para cima!” no momento em que se separaram na estação de Auschwitz. O casamento com Zvi, o nascimento das três filhas e o papel de Otto Frank que veio a casar com a mãe de Eva. Otto Frank era o pai de Anne Frank, antiga vizinha e amiga de Eva em Amesterdão, sobrevivera a Auschwitz e a quem Miep Gies entregou o diário de Anne que descobrira no esconderijo. Otto Frank teve um papel fundamental na divulgação do diário da sua filha e foi um companheiro amigo e sensível de Eva, ajudando-a a encontrar um caminho para a sua vida. Ao oferecer-lhe a sua Leica com que fizera tantos retratos de família com Anne, Margot e Edith, ajudou-a na sua actividade como fotógrafa.

Este texto já vai longo mas não queria deixar de referir ainda dois aspectos que surgem no livro. A forma como a justiça foi branda para os delatores e que levou a que milhões de seres humanos fossem assassinados. A holandesa que denunciou a família de Eva aos nazis foi condenada a 6 anos de prisão e não demonstrou qualquer remorso durante o julgamento, o que aconteceu com a maioria dos criminosos nazis. A média das sentenças para os “caçadores de judeus” era de dez anos, mas algumas baixaram para 12 meses. Por fim, outro aspecto perturbador foi a campanha e os processos complicados em que Otto se viu envolvido, segundo os quais o Diário era um embuste, uma fabricação criada pelo pai de Anne Frank para disso obter vantagens. Tal como hoje, os negacionistas do Holocausto fazem o seu trabalho sujo. Daí que seja tão importante todo o trabalho que se faça para lembrar a história e torná-la viva a todos quantos não souberam o que é viver em ditadura.

4 de Julho de 2021