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Lendo e escrevendo

Lendo e escrevendo

A Ridícula Ideia de não voltar a ver-te, Rosa Montero, 2013

16.06.21, Almerinda

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Faz hoje precisamente 5 anos que terminei a leitura deste livro de que gostei muitíssimo. Republico aqui o que então escrevi e postei no facebook.

 

Um dos livros que comprei nesta Feira do Livro e o terceiro que leio desta autora madrilena nascida no mesmo ano em que nasci e por quem tenho muita empatia. A leitura de “A Ridícula Ideia de não voltar a ver-te” que é um livro fascinante e comovente reforçou essa proximidade afectiva e ideológica com Rosa Montero. Um daqueles livros que nos ajudam a reforçar a convicção da indispensabilidade da luta feminista quando se anseia por um mundo mais justo e melhor para todos.
Logo no início, ela alerta que “este não é um livro sobre a morte”. Em minha opinião é um livro sobre a forma de enfrentar o luto por uma morte de alguém muito querido, um exercício de superação das limitações da vida que só a arte e a literatura têm a capacidade de fazer. Ela cita Fernando Pessoa “A literatura, como a arte em geral, é a demonstração de que a vida não basta.”
A vida literária e não só, está cheia de coincidências, um dos vários hashtags para que Rosa Montero nos remete ao longo do livro; foi no processo da doença de Pablo, marido de Rosa Montero, que lhe chegou às mãos o diário que Marie Curie escreveu ao longo do ano que se seguiu ao falecimento repentino de Pierre Curie. Assim, o centro desta obra de Rosa Montero é a personalidade extraordinária de Marie Curie (1867-1934). Rosa chama-a de “Mutante”. Ela foi uma pioneira absoluta: a única mulher que recebeu dois prémios Nobel em áreas diferentes (Física e Química), a única mulher no Panteão dos Homens Ilustres em Paris, a primeira mulher a licenciar-se em Ciências na Sorbonne, a primeira mulher a doutorar-se em Ciências em França, a primeira mulher a leccionar na Sorbonne… uma polaca que lutou de forma ímpar contra inúmeras adversidades – dificuldades económicas, inveja da comunidade científica, estranheza da sociedade pelo seu pioneirismo, conciliação da intensa vida profissional e familiar, problemas de saúde, verdadeiro linchamento público pelo seu relacionamento com Paul Langevin – nunca aceitando assumir o papel de vítima, antes rompendo e fazendo um caminho impressionante numa “época em que às mulheres quase nada era permitido”. Talvez por temperamento, certamente pela personalidade tenaz e pela sua postura face à vida e à sociedade, há em Marie Curie um desdenhar da sua feminilidade, pelo que nunca quis dar parte de fraca nem mesmo quando passava mal durante os períodos de gravidez, nunca fez referência aos problemas que teve de enfrentar por ser uma pioneira e única num mundo de homens nomeadamente quando foi candidata e quando recebeu o prémio Nobel, nem nunca associou os seus problemas de saúde e do marido aos trabalhos de investigação e de produção de rádio e de polónio. Quando o talento das mulheres tinha de ser escondido atrás de nomes masculinos ou elas tinham de se travestir de homens, sendo dados vários exemplos e até o caso da papisa Joana, e quando até ao século XX as mulheres não tinham saídas profissionais para além de operárias ou damas de companhia, como aceitar a ambição de uma mulher a querer ascender ao conhecimento e ter uma carreira? Daí ter sido alvo de campanhas sujas e ferozes contra ela, por inveja, por preconceito, porque se a ambição é natural num homem é impensável que possa ser assumida por mulheres! A culpa sim, ou o apagamento! Mas ambição não; não é coisa de mulheres!
Rosa Montero aproveita para nomear algumas cientistas e investigadoras que foram pioneiras, que abriram caminhos para grandes descobertas contemporâneas – Lise Meitner, Rosalind Franklin, Henrietta Swan Leavitt ou Jocelyn Bell - que mais tarde foram alvo de reconhecimento através da entrega dos “Nobel” a homens que, ou usurparam o trabalho delas ou nem sequer as nomearam quando receberam os galardões. O contrário do que aconteceu aquando da atribuição do primeiro Prémio Nobel da Física para Pierre Curie e Henri Becquerel pela descoberta do polónio e do rádio, que Pierre se recusou a receber caso o nome de Marie não fosse incluído. Um caso muito bicudo para a época que acabou com a inclusão do nome de Marie, mas com a atribuição do valor em dinheiro apenas aos dois homens, como se Marie não contasse! Coube a Pierre subir ao palco e fazer o discurso de agradecimento, tendo aproveitado para atribuir a Marie Curie todo o mérito pela descoberta. O palco para ele; o apagamento dela, sentada no meio da audiência. Talvez por isso a relação de laureados com o Nobel até 2011 seja de 786 homens para 44 mulheres. Quantas terão sido preteridas, esquecidas, apagadas?
Por fim, este belo livro, fruto de um profundo trabalho de investigação e consulta de documentos sobre a vida e obra de Marie Curie, é valorizado com diversas fotografias de Marie Curie, do marido Pierre Curie, das filhas Irène e Ève e também de outras personagens e lugares que Rosa Montero convoca ao longo da obra. Encerra com o diário de Marie Curie, um sentido e sofrido testemunho da ainda jovem cientista entre Abril de 1906 a Abril de 1907, de onde é retirada a frase escolhida por Rosa Montero para título deste livro.
16 de junho de 16
 

Mulheres da minha Alma, Isabel Allende

14.06.21, Almerinda

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Mulheres da Minha Alma, Isabel Allende, 2020

Depois de um livro que demorei quase um mês a ler, soube-me muito bem agarrar neste “Mulheres da minha Alma” de Isabel Allende. Li-o num ápice. Textos, a que não vou chamar capítulos, curtos, soltos, sem uma ordem definida, mas todos com um fio condutor: trazer à memória as mulheres que contribuíram para Isabel Allende ser feminista e lutar pelo feminismo. Ao ler estes textos senti-me positiva e com vontade que este livro chegasse às mãos de muitas mulheres que não são feministas e que acham que o feminismo é uma coisa do outro século, a mulheres que precisam de ler alguma coisa que lhes levante a auto-estima e já agora, também às feministas e aos feministas.

É uma reflexão e uma memória pessoal da escritora. Tem partes muito divertidas, outras mais sérias que fazem parte também da minha história de feminista não académica que viveu as lutas e as causas dos movimentos de mulheres em Portugal e também a nível internacional. A certa altura, Isabel Allende escreve “isto não é, de todo, uma dissertação elevada, é só uma conversa informal.” Aliás, ao lê-lo, lembrei-me daquele livrinho precioso de Chimamanda Ngozie Adichie “Todos devemos ser Feministas”.

Panchita, a mãe e Paula, a filha são as pessoas mais referidas ao longo do livro. E ela, a viver um terceiro casamento, falando constantemente dos seus 70 e muitos anos que lhe dão uma serenidade e um apaziguamento que lhe permitem olhar para trás, para os anos que se passaram e o que fez nos vários países onde viveu e por onde passou. E de todas as personagens dos seus muitos romances, Eliza Sommers de “Filha da Fortuna” com quem gostaria de jantar. Isabel Allende considera que o feminismo foi a revolução mais importante do século XX e percebe por que razão a mãe não conseguiu apanhar a onda do feminismo. A experiência pessoal de Isabel Allende, aliada aos contactos que teve com escritoras feministas e com os seus escritos, em finais dos anos 60, quando era colaboradora da revista “Paula” permitiram-lhe aprofundar a sua consciência feminista.

A paleta de temas abordados ao longo do livro é extensa: os padrões de beleza e juventude impostos que destroem a auto-estima das mulheres; o sentimento de culpa que persegue as mulheres; o envelhecimento, a sexualidade ao longo da vida; a sexualidade não binária; o poder da linguagem e das palavras e a sua não neutralidade; o prazer e o risco que o prazer feminino é para as religiões e para as tradições, não esquecendo o flagelo da mutilação genital feminina ainda em tantos países e regiões do planeta, assim como os casamentos forçados de crianças e de meninas; a educação das meninas e dos meninos distribuindo papéis precisos e estereotipados a cada um dos géneros eterniza as discriminações de género; os femicídios, o expoente máximo da violência de género em todo o mundo, com destaque para o México (Ciudad Juarez) e República Democrática do Congo; os crimes de honra; o assédio; a não valorização das mulheres nas artes e mesmo actualmente em sectores de ponta e de grandes avanços tecnológicos (Silicon Valley, por exemplo) onde as mulheres são uma escassa minoria; a violação como arma de guerra e o medo como instrumento de controlo; as tarefas do cuidar não pagas e não reconhecidas, mas que, sendo imprescindíveis, continuam maioritariamente sobre os ombros das mulheres; a luta pela despenalização do aborto e o acesso aos direitos reprodutivos; a necessidade de as mulheres se juntarem e serem barreira ao machismo. Neste último ponto, Isabel Allende fala da importância do movimento global #MeToo que vem desocultar o grande tabu que é o assédio e nomeia a canção “Um violador no teu caminho” composta em 2019 por quatro jovens chilenas, um rastilho que juntou milhares de jovens em centenas de praças em todo o mundo. Para além da fundação que ela própria criou, dá outros exemplos de luta em contra corrente ao patriarcado, como por exemplo Olga Murray que criou uma instituição de resgate de meninas nepalesas vendidas como escravas. Como ela diz, estes exemplos podem ser considerados uma gota no oceano do muito que há a fazer no globo, mas as novas gerações estão mais equipadas do que a sua mãe Panchita, que nos anos 40 do século passado se viu sozinha, abandonada pelo marido no Peru e com três crianças para criar.

Há muitas referências importantes neste livro de Isabel Allende, mas não posso deixar de aqui referir o destaque que dá a Michelle Bachelet “heroína digna de romance”, a primeira mulher presidente do Chile, que desempenhou um papel determinante não só nas prioridades que definiu visando a melhoria da situação da mulheres chilenas (combate à violência doméstica e distribuição da pílula do dia seguinte) como os esforços que desenvolveu para a reconciliação entre os militares e as vítimas da ditadura.  

A parte final do livro foi escrita em Março de 2020 e Isabel Allende, talvez por ser ainda no início da pandemia, tem uma visão optimista relativamente ao período pós-pandemia. Ela divide os humanos face à pandemia em pessimistas, realistas e optimistas. Diz ela: “Não podemos continuar numa civilização que se baseia no materialismo desenfreado, na cobiça e na violência.

Este é um momento de reflexão. Que mundo queremos? Julgo que é essa a pergunta mais importante do nosso tempo, a pergunta que todas as mulheres e homens conscientes devem fazer-se…”

(…) “Queremos uma civilização inclusiva e igualitária, sem discriminação de género, raça, classe, idade ou qualquer outra classificação que nos separe. Queremos um mundo amável, onde imperem a paz, a empatia, a decência, a verdade e a compaixão. E, acima de tudo, queremos um mundo alegre. A isso aspiram as bruxas boas. O que desejamos não é uma fantasia, é um projecto; entre todas, podemos conseguir.

Quando o coronavírus passar, sairemos das nossas tocas e entraremos cautelosamente numa nova normalidade; então, a primeira coisa que faremos será abraçarmo-nos nas ruas. Que falta nos fez o contacto com as pessoas! Vamos celebrar cada encontro e cuidar amavelmente dos assuntos do coração.”

14 de Junho de 2021

 

Filhos e Amantes, D. H. Lawrence

10.06.21, Almerinda

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Filhos e Amantes, D. H. Lawrence, 1913

Sem deixar de ir lendo as “novidades”, foi uma das intenções que formulei no início deste ano, ir descobrir livros há muito comprados e “esquecidos” na estante e ler e devolver alguns livros emprestados. Desta vez fui descobrir D. H. Lawrence e “Filhos e Amantes”. Confesso que foi uma leitura demorada e, ao longo das suas mais de quinhentas páginas, por vezes achei que algumas partes e passagens podiam ter sido mais encurtadas, que por vezes as descrições não precisavam de ser tão frequentes e minuciosas… mas, no final, a característica deste livro também tem esses aspectos, quer se goste, quer não.

Entrei no ambiente da época, com este livro. Inglaterra vitoriana, região mineira das Midlands, famílias numerosas, pobres, em que as mulheres são o coração e suportam sozinhas não só a maternidade como o equilíbrio numa conjugalidade feita de desencanto, de frustração, de ausência. Maridos rudes e ausentes, numa vida de trabalho difícil e precária, encontram na taberna, ao fim do dia, com os outros homens, o suporte para aguentar a dureza da mina. Mulheres sofridas, que encontram refúgio no amor aos filhos, na espiritualidade, na leitura, na paixão pela natureza e também mulheres que iniciam um caminho de abertura e independência, aderindo aos ideais sufragistas ou frequentado associações como a “Women’s Gild”. O romance não deixa também de abordar a dureza e a perigosidade das longas jornadas de doze horas de trabalho nas fábricas e nas minas e a resistência dos mineiros através de greves prolongadas e da solidariedade de classe, sempre que há um desastre que vitima um dos companheiros. Foram todos estes aspectos que achei muito interessantes, para além das descrições das paisagens e o tratamento dos sentimentos das personagens ao longo do livro.

A família Morel – Walter, o pai, Gertrud, a mãe e Paul, um dos filhos – Miriam e Clara são as personagens centrais do romance. Gertrud canaliza todo o seu afecto para os filhos, sobretudo para Paul, que é o seu confidente e companheiro. A trabalhar numa fábrica em Nottingham e dedicado à pintura nos tempos livres, Paul devota de tal modo à mãe todo o seu amor, que não consegue libertar-se de modo a corresponder a um relacionamento e a um casamento com alguém da sua idade. Miriam e Clara são em tudo opostas. Se a primeira é tímida e tem dificuldade em sair do amor casto e místico que dedica a Paul, Clara, uma mulher separada e a trabalhar na mesma fábrica de Paul, tem uma visão crítica sobre os homens e sobre o que os move, é uma mulher mais liberta e independente. Mas a dedicação de Gertrud bloqueou no filho a sua capacidade de poder amar outras mulheres e retirou-lhe a autonomia e a possibilidade de ser feliz sem ela. O amor maternal exclusivo e egoísta que não permite que o filho cresça emocionalmente torna-o incapaz de se dedicar a outra mulher que não seja a mãe.

Independentemente de uma caracterização psicológica e física bastante detalhada de todas as personagens, podemos dizer que, na generalidade, os homens são aqui tratados como uns brutamontes, incapazes de demonstrar sentimentos. Paul, tímido e sensível, sai fora desse padrão mas, no entanto, tal como os outros homens, é imaturo, inconstante e trata o amor como um brinquedo que rapidamente se desgosta e que descarta. Miriam, uma jovem tímida e pouco sociável, dominada pelo peso da religião e dos preconceitos religiosos e disposta a todos os sacrifícios, mantém no entanto a chama da revolta contra a condição de inferioridade das mulheres e deseja aprender coisas novas e sair da rotina que a enfastia. As mulheres deste livro não são figuras apagadas, antes assumem um papel forte e destacado.

Depois dos dilemas e das escolhas que as personagens vão fazendo ao longo do romance, a morte de Gertrud deixa Paul só e sem perspectiva de futuro. Cabe a cada leitor/a decidir.

9 de Junho de 2021