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Lendo e escrevendo

Lendo e escrevendo

Uma história com 50 anos

29.05.21, Almerinda

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Antes que termine o mês de Maio, trago aqui o texto que escrevi para o Escola Informação deste mês. Ontem lembrámos Carolina Beatriz Ângelo nos 110 anos do seu gesto corajoso e generoso ao ser a primeira mulher a votar em Portugal. Há tanta mulher que rompeu com as cadeias do conservadorismo patriarcal que merece ser nomeada e celebrada. Aqui vai este meu modesto contributo. 

 

Uma história com 50 anos

Em Maio de 1971, três mulheres decidiram fazer um livro a seis mãos. Uma delas – Maria Teresa Horta - cobardemente agredida pela PIDE por causa do seu livro “Minha Senhora de Mim”, reagiu assim quando se encontrou no dia seguinte para almoçar com as amigas Maria Isabel Barreno e Maria Velho da Costa:  “Uma mulher apanha uma tareia porque escreve um livro? O que é que eles fariam se fôssemos três a escrever um livro?”.

Foi assim que começou essa maravilhosa aventura que foi a escrita de “Novas Cartas Portuguesas” há precisamente 50 anos. Nove meses depois, tal como um parto, era publicado por Natália Correia, a única editora que teve a coragem de o publicar na íntegra. Três dias depois, a 1ª edição era recolhida e destruída pela censura, por conter “passagens francamente chocantes por imorais, constituindo uma ofensa aos costumes e à moral vigente no País”, nas palavras do censor.

Seguiu-se o chamado processo das “Três Marias”. Interrogadas separadamente pela PIDE/DGS na tentativa de saber quem tinha escrito o quê, o pacto de silêncio das Três Marias nunca foi quebrado. Aqueles 120 textos retratavam a sociedade portuguesa, a guerra colonial, a opressão das mulheres, a violência, a emigração, a pobreza, os espartilhos da família tradicional católica. Era um libelo contra a ideologia retrógrada, opressiva e castradora do antes do 25 de Abril. Aqueles textos que constituíam as “Novas Cartas Portuguesas” queriam estilhaçar a ditadura e iam ao cerne da opressão e ao estatuto das mulheres. Constituíam uma unidade na diversidade e as suas autoras eram responsáveis pelo todo, não se deixando intimidar por um regime no seu estertor. Se em Portugal só uma elite intelectual e mais esclarecida sabia do que se passava, fora de Portugal o impacto foi enorme: feministas movimentaram-se, houve manifestações junto às embaixadas de Portugal em várias cidades do mundo, a comunicação social mais influente de todo o mundo acompanhou o processo e em Junho de 1973, na Conferência da National Organization for Women, o processo das Três Marias foi votado como a primeira causa feminista internacional. A solidariedade feminista, para a qual o contributo de Simone de Beauvoir foi determinante, não deixou isolar as três escritoras e a sua obra teve um papel muito relevante no despertar das ideias feministas e emancipatórias depois do 25 de Abril de 1974 em Portugal.

Maria De Lourdes Pintasilgo, num artigo de opinião na revista Visão, por ocasião do 8 de Março, chamou a este livro “O livro esquecido”. “Além de uma obra literária invulgar, as Novas Cartas Portuguesas foram um acontecimento único.”

Não deixemos esquecer este livro, uma escrita de mulheres, de liberdade, que ajudou este país a quebrar as duras correntes do conservadorismo, um marco de resistência e de liberdade num país atrasado e oprimido.

Das três Marias, Maria Teresa Horta, que neste mês de Maio assinalou mais um aniversário, é a única que ainda vive e continua a surpreender-nos com a sua poesia e escrita marcadamente feminista, tendo este ano o seu livro “Estranhezas” recebido o Prémio Literário Casino da Póvoa, no festival literário Correntes d’Escritas. Maria Velho da Costa faleceu a 23 de Maio de 2020 e Maria Isabel Barreno em 2016.

Serão sempre as 3 Marias. Deixaram uma marca indelével na literatura e na história dos feminismos.

23 de Maio de 2021

Almerinda Bento

Da Meia-Noite às Seis, Patrícia Reis

14.05.21, Almerinda

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Da meia-noite às seis, Patrícia Reis, 2021

Patrícia Reis uma revelação e este já é o seu décimo livro. Já tinha lido apreciações sobre “Crianças Invisíveis” e recentemente li no JL, não só a entrevista que lhe foi feita, mas também os textos de Miguel Real e de Valter Hugo Mãe sobre este livro que decidi comprar, aproveitando para fazer uma troca de livro repetido entre os muitos que recebi nos anos. Excelente escolha.

A dedicatória a Maria Teresa Horta, a quem há tempos faleceu o marido, não podia ser mais ajustada. Susana Ribeiro de Andrade, uma das personagens principais deste livro, é confrontada com o fim inexorável e irreversível do amor da sua vida, na sequência de ter sido contaminado com o vírus. Está-se em 2022 e a pandemia continua implacável, a fazer o seu caminho. O choque brutal desta morte deixa-a sem chão, apenas com as memórias do homem que amava, o seu companheiro com quem continuava a conversar de mão dada! A viagem a Roma, as preferências literárias dele por Camus, Agustina ou o “Adriano” de Marguerite Yourcenar que ela não lera (e que ele dizia que era um daqueles livros que não podem deixar de ser lidos), todas essas memórias são aquilo a que se agarra num tempo de luto, em que interrompe momentaneamente a sua actividade profissional numa estação de rádio.

No regresso, aceita o horário das “horas mortas”, aquele que é desvalorizado (“seria aquilo trabalho” pensam até alguns colegas), por ser rotineiro, por ter uma audiência menos interessante, aquele que afinal ninguém quer. Rui Vieira também voltara à rádio na noite de Natal de 2019. Quem quer trabalhar nesses dias? Quando se pensa que já não servimos porque temos uma incapacidade, quando se é descartável, valha-nos uma vaga porque há que cumprir a quota das pessoas com deficiência… De tudo isto nos fala Patrícia Reis: das discriminações, da homofobia, do racismo, da solidão, da precariedade que ficou mais exposta com a pandemia, mas também do verso da medalha: da solidariedade, da revolução que é dar voz às pessoas, de que há que descobrir o lado positivo da vida, de que a felicidade é possível e que muitas vezes está ali mesmo ao nosso lado.

Este livro é também um elogio aos trabalhadores da cultura, ao extraordinário poder da rádio, da voz, do sentido e da força das palavras. Li este livro rapidamente, com uma profunda empatia, não conseguindo deixar de fazer muitos sublinhados, o que não é habitual em mim. O “aquário” de onde Susana Ribeiro de Andrade faz as suas emissões da meia-noite às seis, os emails de Rui Vieira com as notícias que Susana irá ler a cada hora e as conversas que ambos trocam a partir do computador de Rui, os gestos automatizados de higienização por causa da pandemia, em suma, este mundo confinado coloca-nos a eles e a nós, num cenário que não é de ficção, mas da real fragilidade humana para a qual nunca estamos preparados.

Mesmo quando as canções são de uma play list que o computador escolheu, é sempre possível pôr um pauzinho na engrenagem do sistema e introduzir Caetano Veloso a perguntar em “Cajuína” : “Existirmos: a que será que se destina?”

9 de Maio de 2021

 

 

Margarita e o Mestre, Mikail Bulgakov

09.05.21, Almerinda

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Margarita e o Mestre, Mikail Bulgakov, (1928-1940)

Numa das minhas poucas resoluções para 2021, constava ler um conjunto de livros há muito comprados e ultrapassados na voragem das novas aquisições que acabam sempre por se impor. Na altura, fiz essa lista de livros a resgatar ao esquecimento, que irei ler e intercalar com novidades que entretanto vá adquirindo.

Nessa lista de livros “esquecidos” na minha estante, “Margarita e o Mestre” de Mikail Bulgakov é considerado a sua obra maior e uma das grandes obras-primas da literatura universal. O livro, que Bulgakov começou a escrever em 1928 e que terminou em 1940, ano da morte do escritor, precisou de 27 anos para poder ser lido pelos leitores russos, tendo sido publicado na revista Moskva, em 1967, numa altura em que as autoridades russas já tinham reabilitado este escritor perseguido e banido da literatura. Tendo escolhido escrever de forma independente, escolhendo os temas e não se submetendo aos cânones impostos pela Associação Russa dos Escritores Proletários, as suas peças teatrais gozavam de grande popularidade junto ao público, mas eram alvo da comissão de censura e dos críticos teatrais, pelo que em 1930 foi totalmente banido das editoras e do teatro. Não podia publicar, mas escreveu sempre. Apaixonado pelo teatro, trabalhou sobretudo como consultor literário, tendo dramatizado “Almas Mortas” de Gogol e “D. Quixote” de Cervantes, duas das referências que nos aparecem em “Margarita e o Mestre”.

Este enquadramento da época em que Bulgakov viveu ajuda-nos a compreender “Margarita e o Mestre”. Aliás, acho que é passível de inúmeras leituras, dada a escrita torrencial, fantástica e a imaginação prodigiosa ao longo de todo o livro, repleto de descrições muito visuais, diria mesmo cénicas. Podemos encontrar três histórias dentro deste livro, separadas mas indissociáveis. O Mestre, que aparece pela primeira vez quase a meio do livro, na instituição psiquiátrica onde se encontra o poeta Ivan, escreveu um livro recusado sobre Pôncio Pilatos e Margarita, a mulher amada que o quer resgatar e provar o seu amor, só aparece mais tarde no livro 2, capítulo 19. A história do Mestre e de Margarita é, quanto a mim, a história de Bulgakov e da sua mulher e da luta das suas vidas pelo reconhecimento e pela sobrevivência num mundo opressivo, que o excluiu assim como os artistas e escritores alvo da censura. Mas antes desta história, temos aquela que vai começar com o poeta Ivan e Mikail Berlioz, editor de uma revista literária e administrador da MASSOLIT, uma das mais importantes associações literárias de Moscovo. Conversam sobre a existência ou não de Jesus, quando são abordados por um “estrangeiro” que lhes vai contar uma história em que Pôncio Pilatos interroga Yeshua Ha-Nozri, condenado à morte, não obstante Pôncio Pilatos querer a sua absolvição. Esta terceira história, que assim se insinua, cria desde logo uma estranheza, até entre Ivan e Berlioz, que se perguntam se tinham mesmo ouvido aquela estranha história, ou se teria sido um sonho. O que é a verdade? O que é a mentira? Esse estrangeiro que vai predizer a morte para breve de Berlioz, o que acontece, é afinal Woland, o Diabo, designado de diferentes formas: turista, estrangeiro, louco, professor de magia negra, criminoso, malfeitor, espião. Woland com a sua comitiva – Behemoth (o gato preto), Azazello, Koroviev e Hella – vão provocar o caos em Moscovo com as suas patifarias, fazendo desaparecer pessoas, criando uma sucessão infindável de acontecimentos estranhos, trazendo ao de cima os males da sociedade onde a corrupção, os favores e a delação imperam. O poeta Ivan, que tentara tudo junto às autoridades policiais para que prendessem aquele perigoso estrangeiro, é internado numa clínica psiquiátrica, diagnosticado de esquizofrenia, por contar a história de Pôncio Pilatos que lhe tinha sido narrada pelo estrangeiro. Margarita, para resgatar o seu amado Mestre, vende a alma ao diabo, transforma-se numa feiticeira que voa sobre Moscovo e vai-se vingar das maldades que fizeram ao Mestre.

Uma história bizarra, com muitas personagens, com imensas cenas algumas até cómicas, uma imaginação prodigiosa, uma sátira, uma alegoria a um tempo e a uma sociedade em que o mal andava à solta, desrespeitando os indivíduos.

 Voltamos ao princípio e à conversa de Ivan e Berlioz, sobre a existência de Jesus, sobre a existência do Bem e do Mal e concluímos que o Bem e o Mal fazem parte da natureza. “Dizes as palavras como se não reconhecesses a existência nem das trevas nem do mal. Mas quererás ter a gentileza de pensar um pouco no seguinte: para que serviria a tua bondade se não houvesse mal e como pareceria a terra se as trevas desaparecessem dela? Afinal, as sombras são projectadas pelos objectos e pelas pessoas. Há a sombra da minha espada. Mas há também as sombras das árvores e das criaturas vivas. Quererias desnudar a terra de todas as árvores e de todos os seres vivos só para satisfazer a tua fantasia de júbilo na luz crua?” (pág. 372).

A epígrafe que abre “Margarita e o Mestre”, extraída do “Fausto” de Goethe, antecipa a dualidade presente na natureza humana:

“Quem és tu, então?”

“Parte daquela força que eternamente deseja o mal e eternamente cria o bem.”

 

6 de Maio de 2021

 

 

 

 

 

 

Mãe

02.05.21, Almerinda

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“Hoje o dia vai correr bem!” era uma das primeiras frases que lhe ouvia quando lhe telefonava ou ela me telefonava. Praticamente todas as manhãs, não por obrigação, mas como rotina boa, como todas as nossas rotinas sem as quais sentimos que algo está a faltar. Já tinha visto um melro e esse era o sinal de vida que a ajudava a acreditar que era bafejada pela sorte, mesmo com todas as adversidades com que lidava de forma positiva e sem se deixar abater.

No dia em que fiz 70 anos, levantei-me à hora em que sabia iria receber os primeiros parabéns do dia. O prazer que tinha em receber telefonemas no dia do seu aniversário, era também o prazer que tinha na sua relação de amor e amizade generosa com os outros. Eu tinha sido a sua segunda filha e aqueles telefonemas cedo “para acordar a bebé”, faziam-lhe recordar o parto em casa, que não tinha sido fácil, mas para ela mais uma bênção. 70 anos, sem a voz dela, mas sentindo como se ela me estivesse a acompanhar. Fui até à janela sentir o fresco da rua e lá estavam dois melros divertidos sobre a relva, a fazer pela vida. “Hoje o dia vai correr bem!”, não havia dúvidas.

Para além das nossas parecenças físicas, muitas das minhas habilidades herdei-as dela, sem dúvida, excepto o costurar, que detesto. Os gestos dela, seguindo as receitas favoritas ou as antigas dos doces de Natal, estão em mim. O gosto de mimar quem amo aprendi-o com ela. A força para ultrapassar medos, fragilidades, inseguranças, vou buscá-la ao seu sorriso lindo que sempre me inspira quando os dias estão mais cinzentos.

Hoje é o teu dia, Mãe. Foi o meu filho que mo lembrou quando hoje me estendeu um vasinho de alfazema. Ainda não consegui ultrapassar os tempos do 8 de Dezembro, Dia da Mãe. Fazíamos uma festa, então. Fazemos uma festa, hoje. Damos o melhor que temos.

Hoje o dia vai correr bem!

Nota: esta aguarela foi-me oferecida pela Zita e pela Ana no dia dos meus 70 anos, sabendo elas como eu gosto de melros.