Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Lendo e escrevendo

Lendo e escrevendo

A Casa dos Espíritos, Isabel Allende, 1982

10.04.21, Almerinda

Hoje não consegui deixar de publicar este texto que escrevi há oito anos. Uma situação inesquecível que me traz à memória Mouriscas e a minha irmã Isabel. Mal imaginava que a minha irmã partiria poucos dias depois. Escrevi-o lá, estávamos nas férias da Páscoa, o tempo era de chuva e cinzento e não nos dava grandes oportunidades de sair. Tinha acabado de ler "A Casa dos Espíritos" ela andava a ler "O Segundo Sexo". Pediu-me que lhe lesse o que escrevera e comoveu-a recordar uma leitura que já tinha feito há anos pois a fizera lembrar alguns trechos e personagens do livro. 

Aqui vai o que escrevi então, sobre este maravilhoso livro de Isabel Allende.

“A Casa dos Espíritos”, Isabel Allende, 1982

Este é o primeiro romance de Isabel Allende. Primeiro, grande e magistral romance de Isabel Allende e da literatura da América Latina.

É o primeiro de uma trilogia, embora cronologicamente verse sobre a vida da última geração dos del Valle. Como é típico de Isabel Allende, as personagens são únicas, mágicas e inesquecíveis. Partindo do casal Severo del Valle e Nivea que já conhecíamos de “Retrato a Sépia”, a história da família vai-se-nos desvendando ao longo dos cinquenta anos em que as personagens se movem. As filhas Rosa, a bela e Clara, a clarividente. Clara terá uma filha, Blanca e dois gémeos Nicolau e Jaime, totalmente diferentes e com posicionamentos e personalidades até conflituantes. Outras personagens invulgares surgem na narrativa e vão também ter implicação no seu desenrolar como Pedro Tercero Garcia, Amanda, Miguel, Jean de Satigny, Esteban Garcia, Férula, as três irmãs Mora, Tránsito Soto.

Esteban Trueba figura truculenta, contraditória, brutal, frágil, carrasco e vítima surge como um dos narradores dos acontecimentos e acompanha o desenrolar da acção desde o início até final. Noivo de Rosa, acaba por não conseguir casar com ela devido à morte inesperada da belíssima jovem. Irá casar com Clara, irmã de Rosa, figura com poderes especiais, que consegue fazer mover objectos, muitas vezes alheada do que a rodeia, mas também presente e actuante em momentos dramáticos e que, para além da sua ligação aos espíritos, tem o hábito de escrever nos seus “cadernos de anotar a vida”. Estes cadernos, salvos miraculosamente do fogo, vão ser preciosos e fundamentais como material de trabalho de Alba, neta de Esteban Trueba e de Clara. Alba irá fazer a reconstituição da história desde o bisavô Severo e a bisavó Nívea até à actualidade, ou seja, desde os anos 20 do século passado até ao período imediatamente a seguir ao derrube do Presidente Allende, isto é, a época do terror do general Pinochet. Alba é pois a narradora do livro tal como Esteban Trueba, sendo que é através dos olhos de ambos que este livro da memória nos é aberto.

Também as casas, os espaços onde as personagens se movem são mágicos e neste romance elas são também verdadeiras personagens com períodos de crescimento, apogeu, declínio e morte. Las Tres Marias, a casa do campo, primeiro, um monte de ervas e de casebres habitados por seres a viver em condições infra-humanas transformada numa casa senhorial, arrasada pelo terramoto, de novo erguida com o esforço dos camponeses e trabalhadores sem direitos, depois ocupada no tempo da reforma agrária e novamente incendiada e despojada dos que sempre nela trabalharam. A Casa da Esquina, a casa da cidade, refúgio de Clara depois que decidiu abandonar definitivamente a sua relação matrimonial com Esteban Trueba na sequência da cena de violência de que foi vítima. Aí, para além de manter as suas relações com os espíritos, de acolher as suas amigas e de ir acrescentando espaços, divisões e esconderijos tão úteis futuramente e tão necessários à realização pessoal e social de quantos lá viviam, esta casa tornou-se um verdadeiro labirinto.

Este é um livro que dificilmente se esquece e em que ao(a) leitor(a) é dada a oportunidade de ler/ver cenas e situações de grande realismo e crueza. Desde a cena de violência e brutalidade em que Esteban bate na mulher até a deixar inanimada e sem vários dentes, à indecisão e ao conflito interior de Amanda em lidar com a necessidade de fazer um aborto e a sensibilidade de Jaime na resposta ao problema e vulnerabilidade da jovem namorada do seu irmão Nicolau, até às descrições de puro sadismo dos esbirros e carrascos do regime dos generais.

O livro tem outro aspecto muito interessante que é o de ir dando sinais e pistas para acontecimentos posteriores, assim aguçando o interesse de quem lê e desvendando traços e situações que as previsões já haviam anunciado.

Não posso deixar de mencionar as referências ao Poeta ao longo de todo o livro. Nunca o seu nome é referido, embora desde sempre se saiba que este livro também é um tributo a ele, o poeta Pablo Neruda, cujo falecimento ocorreu poucos dias depois do golpe militar e cujo funeral acompanhado por tão poucas pessoas e vigiado por soldados armados de metralhadoras, aparece aqui como o primeiro grito de resistência do povo à tirania. Antes do primeiro capítulo, Isabel Allende escolhe uma estrofe de Neruda para iniciar o seu romance:

“Quanto vive o homem, por fim?

Vive mil anos ou um só?

Vive uma semana ou vários séculos?

Por quanto tempo morre o homem?

Que quer dizer para sempre?”

 

Os últimos capítulos que se passam no período negro da ditadura são motivo para Isabel Allende nos falar da censura, das palavras proibidas como democracia, companheiro, sindicatos, do encerramento da Faculdade de Filosofia e de “muitas outras que abrem as portas do pensamento…” E também da surpresa que é o confronto com o medo que tolhe as pessoas e as leva a fazer actos insuspeitados, desde a maior maldade à mais genuína solidariedade e coragem.

São muitos os aspectos que podiam ser aqui trazidos, tão fértil em ideias e reflexões é esta “Casa dos Espíritos”, mas neste momento em que vivemos numa Europa e num país em profunda crise e instabilidade e em que se quer assacar as culpas a quem não as tem, trago aqui os temas da justiça e da caridade que por duas vezes são abordados no livro.

“ – Isto serve para nos tranquilizar a consciência, minha filha – explicava a Blanca. – Mas não ajuda os pobres. Eles não necessitam de caridade mas sim de justiça.”

(…)

 

“Alba compreendeu que tinham retrocedido aos tempos antigos, quando a avó Clara ia ao Bairro da Misericórdia substituir a justiça com a caridade. Só que agora a caridade era mal vista.”

Certamente o facto de ser sobrinha de Salvador Allende e de ter vivido no Chile à época do golpe militar não é alheio à intenção que levou Isabel Allende a escrever este romance e a tratar o tema do terror, da impunidade, da barbárie, da ausência de liberdades e direitos vividos pelo povo chileno naquela época. Ela quis registar a memória para que não se esqueça o que é a ditadura, para que não se repitam os mesmos erros! Este é pois um livro da memória.

Almerinda Bento

Mouriscas, 21 de Março de 2013

 

Crónicas COM PREGUIÇA, Adelino Correia-Pires

02.04.21, Almerinda

20210402_185211.jpg

Com Preguiça  crónicas, Adelino Correia-Pires, (2014-2015)

Acabei de ler as crónicas do meu amigo alfarrabista (não alfarrobista) Adelino Pires. Se ele ler este meu pequeno texto, poderá achar abusivo que o trate por amigo. Afinal, só estive com ele uma vez, no passado Agosto, quando a Helena me convidou a conhecer um sítio e uma pessoa, dizendo à partida, que eu ia gostar muito. E acertou. Fui conhecer o alfarrabista mesmo no coração de Torres Novas e descobrir os tesouros que só um espaço com história e com coração conseguem ter. Fora os livros, os quadros, as colagens, a pessoa que dá vida a todo aquele espaço, sai-se dali com vontade de lá voltar, percebendo-se que há ali tanto para descobrir.

Folheio as crónicas e logo fico presa ao prefácio de Fernando Alves, um dos membros do Clube das Pessoas Raras. Na badana, o autor das crónicas elucida-nos que o conteúdo deste seu primeiro livro surgiu no Jornal Torrejano ao longo de 2014 e 2015 e, sem rodeios, sugere uma leitura pausada e com a possibilidade de se ficar a meio ou de se chegar ao fim. Cheguei ao fim e com muito gosto. À medida que lia uma crónica, tinha vontade de passar à seguinte.

O livro tem uma apresentação simples e muito cuidada, direi mesmo muito elegante. Embora as crónicas estejam divididas por três grandes grupos, cada qual iniciado por um poema e por uma ilustração de Alexandra Sirgado, há uma unidade e uma coerência que fazem das crónicas um painel de reflexões e de opiniões de alguém que, com extrema sensibilidade e acutilância não receia ser politicamente incorrecto e definitivamente nada neutro. O abandono dos centros históricos e do pequeno comércio local, o privilegiar do comércio em série nos mega espaços comerciais, a preguiça e a incúria dos governantes ávidos de responder às suas clientelas desbaratando o lado genuíno e específico de cada região, o desprezo pelo potencial que há em cada pessoa… surgem ao longo das crónicas com ironia, com grande domínio da linguagem, com trocadilhos, com jogos de palavras que a nossa língua permite a quem a conhece bem e que com ela sabe lidar. Adelino Pires não esquece os seus escritores e pintores de referência, os meninos e jovens que têm passado pela Livraria d’Outro Tempo e nos quais deposita a esperança dum futuro mais justo. Estou com o amigo alfarrabista quando ele diz “que não há futuro nem sustentabilidade sem o paradigma dos afectos.”

Este é um primeiro livro de Adelino Pires, mas percebe-se que ele tem material para muito mais, deixando-nos na esperança, ao falar do seu avô Adelino que nos anos 30 do século passado foi para Moçambique e lá casou, que isso talvez desse um livro… A última crónica passa-se na maternidade no dia em que a neta Maria Benedita nasceu, mas prolonga-se no capítulo dos Testemunhos, todos eles escritos pelos familiares mais próximos. Um livro que respira amor por todos os poros.

Por fim, a capa é linda ou não tivesse sido escolhido um belíssimo prato ratinho tão comum no Ribatejo e na região de Portalegre de onde Adelino Pires é natural. Para quem já visitou a casa-museu de José Régio, teve a possibilidade de aí encontrar uma colecção incrível daqueles pratos usados pelos trabalhadores beirões que sazonalmente asseguravam a ceifa dos cereais. Também na Livraria d’Outro Tempo, para além de preciosidades livrescas, é possível encontrar pratos ratinhos e outras belíssimas peças de artistas anónimos e de pintores de Torres Novas.

2 de Abril de 2021