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Lendo e escrevendo

Lendo e escrevendo

Histórias daqui e dali, Luis Sepúlveda

28.03.21, Almerinda

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“Histórias Daqui e Dali”, Luis Sepúlveda, 2010

O segundo livro de Sepúlveda que leio este ano. Vou à minha biblioteca e conto quinze livros deste escritor chileno e, embora tenha já lido a maioria, ainda há alguns por descobrir. “Histórias daqui e dali” é, à semelhança de outros livros de Sepúlveda, um conjunto de pequenas histórias e memórias, onde põe todo o seu ser e em que a ternura, a tristeza e o apego aos valores primordiais são os traços que fazem dos seus livros aquilo que eles são: solidariedade com os oprimidos, amizade incondicional, ânsias de liberdade, escolhas do lado certo.

Na capa da edição da Porto Editora, o fiel moleskine (a lembrar o amigo Bruce Chatwin) e uma caneta, com que Sepúlveda anotava imagens, palavras soltas, às vezes uma frase, para mais tarde talvez se transformar num romance, num conto, no título de uma história. Como naquela noite inesquecível de tempestade, na região amazónica onde conheceu um velho solitário e solidário, que o visitou em sonhos e que muitos anos mais tarde deu origem ao romance “O Velho que lia Romances de Amor”. Uma frase anotada, uma fotografia em tons sépia, um contrato antigo, um papel guardado, uma notícia num jornal podem ser o material para que Luis Sepúlveda crie mais uma história simples mas nunca desprovida de sentido.

Algumas destas “Histórias daqui e dali” são histórias de regresso depois de catorze anos de exílio, de reencontro com o Chile já sem Pinochet, mas com as feridas da ditadura. A ditadura tinha acabado, mas o Chile era uma sombra triste do Chile solidário, participativo, militante, que Sepúlveda conhecera com Salvador Allende e que a ditadura matara. É um reencontro com o passado, com as memórias não só do Chile mas de tantos países da América latina que foram lugares de exílio e de resistência dele e dos seus amigos.

Será que a pureza e a alegria dos risos do grupo de crianças do bairro pobre de La Victoria fotografado por uma amiga, ainda subsistirão passados oito anos? Alguém se lembra de fazer um pequeno desvio da autoestrada para ir a Talagante comprar os pastéis e tartes que tornaram famosa aquela povoação? Será possível parar o aquecimento global que está a fazer desabar enormes massas de gelo da Antárctica – tornada absurda atracção turística – as quais estão a pôr em risco a Patagónia e a Terra do Fogo? Mas Sepúlveda comove-se e acredita que nem tudo está perdido quando um rapazinho lhe bate à porta para pedir livros para construir uma biblioteca num bairro pobre de Santiago.

Como em todos os livros de Sepúlveda, a amizade e a referência aos amigos ocupa uma parte significativa deste. Eram a Sociedade do Conde de Monte Cristo, unidos pela consigna “Nem esquecimento, nem perdão”, uma geração de lutadores por causas nobres, que imaginava “o fim das ditaduras e um continente latino-americano habitado por homens e mulheres cujo gentílico seria a palavra irmãos.” Os companheiros do GAP, entre os quais Augusto Olivares, os companheiros da Brigada Internacional Símon Bolivar e a recordação de todos os caídos nessa entrega total, o poeta Mario Benedetti para quem era preciso defender a alegria como uma trincheira, Turquito o escritor que lhe arranjou um salvo-conduto em Quito e com quem esteve pela última vez na edição das Correntes d’Escritas, Katya Olevskaia a voz da resistência e da esperança sempre que a ouviam dizer “Escuta, Chile”, Víctor Jara ou os irmãos Parra que se reuniam na Peña para cantar e ler poesia ou Daniel Mordzinski, um homem que conta histórias com a sua máquina fotográfica. A propósito deste fotógrafo recordei “Últimas Notícias do Sul” de Luis Sepúlveda com fotografias de Daniel Mordzinski lido há alguns anos e a que voltei agora para recordar a história de D. Delia Cossio que os dois amigos conhecerem quando lhe bateram à porta, no dia do seu 96º aniversário e que Sepúlveda imortalizou no seu conto “A Senhora dos Milagres”. E como sempre, a gratidão pelo festival da Póvoa de Varzim onde teve a oportunidade de conhecer excelentes escritores de Moçambique, Cabo Verde e Angola, entre os quais Nelson Saúte.

Implacável com aqueles que considera desprezíveis, nutre um grande respeito pelos jornalistas, embora considere que a profissão está em decadência muito fruto da precariedade dos seus profissionais. Inevitavelmente, neste livro também os animais não foram esquecidos – cães livres, cães fura-vidas – Edward primeiro chamado de Kim, La Negra e Chiquita. Sepúlveda gostava de contar histórias aos seus cães Zarko e Laika, mas sabendo que eles gostavam de ouvir a história dos primeiros, duvida se alguma vez lhes contaria a história de Chiquita. A liberdade é um bem por demais precioso.

De cada vez que se lê um livro de Sepúlveda, fica-se com o sabor amargo das muitas histórias fantásticas que ele guardaria no seu moleskine, mas que a morte prematura não deixou que pudéssemos desfrutar.

27 de Março de 2021

 

Palavras em Tempos de Crise, Luis Sepúlveda

22.03.21, Almerinda

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“Palavras em Tempos de Crise”, Luis Sepúlveda, 2012

Há um ano tomámos conhecimento de que Luis Sepúlveda, que tinha estado nas Correntes d’Escritas na Póvoa de Varzim, estava infectado com o novo coronavírus. Viria a falecer em meados de Abril com apenas 70 anos e para quem gostava do homem e dos seus livros, foi um choque e uma grande tristeza. Ainda tenho por ler alguns dos seus livros e este ano, quando seleccionei os livros que iria ler, fui buscar um deles e, no “sorteio” dos 27 títulos a ler este ano, tirei o papelinho que dizia “Palavras em Tempos de Crise”.

Não sei se foi o facto de “Rosas de Atacama” ter sido um dos primeiros livros que li de Sepúlveda, esse livro sempre teve um lugar muito especial no meu coração. Mal comecei a ler “Palavras em Tempos de Crise”, percebi que a estrutura era parecida: pequenos artigos, experiências e reflexões pessoais.

Embora abarcando temas muito diversos, o facto de ter sido escrito em 2012, quando Espanha, Portugal e tantos outros países sobreviviam debaixo do garrote do défice e da dívida e os governos se baixavam na vassalagem aos mercados e aos poderes da finança, faz com que muitos dos artigos deste “Palavras em Tempos de Crise” sejam verdadeiros manifestos de um homem de esquerda que não poupa Aznar, Rajoy, Felipe González e outros, que permitiram que as consequências da corrupção, da especulação imobiliária e a miragem de dinheiro fácil com o turismo desabassem sobre os povos, para pagarem os desmandos de desgovernações sucessivas. Sepúlveda, o andarilho que escolheu as Astúrias como segunda pátria, não esquece neste livro os mineiros e as suas greves prolongadas e corajosas, lembrando também os mineiros chilenos e as suas lutas. A sua escrita, vincadamente militante e poderosa, usa expressões como “solidariedade de classe” em contraponto aos eufemismos com que os governantes vassalos tentam adocicar a luta de classes que não morreu. Por isso, Sepúlveda fala do peso do Sul em todos os seus livros, porque como escritor tem um compromisso de dar voz aos que não têm voz, sejam os emigrantes, os oprimidos, os mineiros explorados, lembrando aquela visita que fez ao campo de extermínio de Bergen Belsen onde, junto a um dos fornos crematórios leu a seguinte inscrição: “Eu estive aqui e ninguém contará a minha história.”

Sepúlveda foi um homem de paixões, pelos seus amigos, pelos seus animais, pela família. Numa vida em constante movimento, a lembrar o pássaro de corda de Haruki Murakami, o autor chileno fala da alegria que é juntar a família dispersa pelo mundo em torno de um churrasco e do prazer que sente por os filhos o tratarem por “velho”. E pergunta-se: terei sido um bom pai? Terei estado presente quando eles precisaram? Terei sido um companheiro? Escreve também sobre os amigos e nomeia-os, recorda episódios, alguns hilariantes e marcantes, inesquecíveis, não esquece amigos que já partiram: Tonino Guerra, Gabo, Neruda, Nicanor Parra, Allende e os amigos que com ele faziam a segurança pessoal do presidente assassinado pela ditadura. E entre os animais, a cadela Laika a lembrar-nos Zorbas num dos belos contos de “As Rosas de Atacama”. E ainda a ternura das primeiras paixões de adolescente…

Por fim e porque Sepúlveda fala com carinho e admiração das Correntes d’Escritas, “um dos melhores festivais literários que se fazem na Europa”, referência ao artigo Pilar e José e ao documentário de Miguel Gonçalves Mendes, exibido em 2011 numa noite particularmente fria.

Este ano, já não tivemos Sepúlveda fisicamente presente na Póvoa de Varzim, mas o festival de 2021 foi-lhe dedicado em permanência e ele esteve sempre presente. Bem haja, Luis Sepúlveda, por dar voz a quem não tem voz.

21 de Março de 2021

 

 

Um Postal de Detroit, João Ricardo Pedro

17.03.21, Almerinda

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“Um Postal de Detroit”, João Ricardo Pedro, 2016

Um livro vertiginoso, delirante, perturbador, alucinante. Foram os adjectivos que me saíram, mal acabei de ler este livro, cuja leitura foi rápida e viciante. Partindo de um acontecimento que constituiu o mais dramático acidente ferroviário em Portugal – Alcafache, Setembro de 1985 – o autor cria um verdadeiro puzzle de personagens, momentos e situações em torno de Marta, de quem só foi encontrada uma mochila no meio dos destroços daquele terrível acidente.

Marta é uma estudante de Belas Artes, desenhadora à vista. Tudo é motivo para os seus desenhos em cadernos, os seus diários visuais. Esses desenhos podem ser feitos durante uma viagem de metro, numa rua do Intendente, numas férias em Lagos ou na casa de Sofia perto de Grândola, ou a partir da janela do quarto que dá para a Praça de Londres. Em qualquer sítio. E podem aparecer aqui ou ali, fazendo parte duma história maior, contada por um narrador que junta peças, que junta falas, que recorda situações, que traz memórias de episódios ou de vozes. Ele, criança, o irmão mais novo de Marta, que ela nunca desenhava e não deixava entrar no quarto para espreitar os seus desenhos. Ele, agora, passados trinta anos.

Tudo no livro é muito visual e nítido: os desenhos de Marta, as brincadeiras de João (o narrador) com os seus exércitos de índios e generais, os relatos do acidente ferroviário feitos por jornalistas, por bombeiros, por feridos e sobreviventes, o trabalho de Silvana a limpar cada objecto do quarto de Marta, sem esquecer o postal de Detroit. E tem partes hilariantes, bem dispostas, ligando histórias dispersas e desconexas, que me fizeram recordar “A Tia Júlia e o Escrevedor” de Mario Vargas Llosa.

Bem perto do final do livro, o narrador dirige-se ao leitor neste termos: “Querido leitor, prometo-te desde já que esta é a última vez que te interpelo nestes termos. Na verdade, detesto fazê-lo. Porque o faço, então? Para te lembrar que deste lado está um homem doente, e que este livro que seguras nas mãos é apenas uma das muitas manifestações da sua doença. Se ainda guardas alguma expectativa a respeito das páginas que te restam, apelo à tua boa vontade, faz uma de duas coisas: deita fora as expectativas ou deita fora o livro.”

Claro que mantive as expectativas e fui até ao final do livro. A cidade de Detroit tinha aparecido inúmeras vezes ao longo do livro, para além do postal de Detroit que Silvana sempre limpava e colocava no mesmo sítio no quarto de Marta, entre os livros sobre Caravaggio ou Cézanne, as pilhas de cadernos de desenho ou a fotografia da equipa feminina de voleibol de que Marta fazia parte. Foi preciso um estorninho entrar pelo quarto de Marta e atirar uma série de objectos ao chão, entre eles o postal de Detroit, para João o apanhar e finalmente ler o que lá estava escrito.

E mais não digo. Leiam o livro. Leiam-no e saberão quem escreveu aquele postal a Marta.

13 de Março de 2021

 

Manhã de Domingo

14.03.21, Almerinda

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Manhã de Domingo

Como sempre, o Gaspar reclama a sua ração da manhã. Nada a fazer. Acordar com um gato em cima da cara a abanar a cauda não permite recusas. Levanto-me, faço-lhe a vontade, volto para a cama. Afinal ainda é tão cedo. Volto-me na cama de um lado para o outro, sem conseguir retomar o sono interrompido. Deito-me de costas, olho para o tecto, começo a recordar o que tenho de fazer, o que está em falta, o que ando a adiar… Procrastinadora até morrer! Entretanto, o Gaspar já satisfeito, aninhou-se no edredon no côncavo das pernas do Vítor.

Levanto-me. Já não consigo conciliar o sono e a luz exterior que passa entre as frinchas do estore, diz-me que ficar na cama é um desperdício.

Olho para o telemóvel à procura de alguma mensagem. Hoje é o dia de Marielle. Há um ano já não podíamos sair de casa e pusemos fotografias nossas no facebook. Enxameámos as redes sociais com “Quem mandou matar Marielle?” Todos sabemos quem foi. O genocida que está no poder. Nas memórias que o facebook me traz, além do “Fevereiro de Almerinda”, os vários desenhos que fiz de Marielle, imagens numa escola em Santiago do Cacém onde há 5 anos fomos distribuir o folheto “No namoro só bate o coração”, uma citação de Miguel Torga: “Recomeça… se puderes, sem angústia e sem pressa e os passos que deres, nesse caminho duro do futuro, dá-os em liberdade, enquanto não alcances não descanses, de nenhum fruto queiras só metade.” Que maravilha! E depois uma fotografia enternecedora a preto e branco: dois velhos de costas, abraçados, a caminhar lado a lado como dois namorados, num passeio duma cidade. Londres? Paris? Edimburgo?

Volto à cozinha. Preparar o pequeno-almoço e buscar um jornal para ir lendo enquanto tomo o leite da manhã. Parece mentira, mas ainda não folheei a revista do Expresso do passado fim-de-semana. Na capa, uma personagem odiosa. O título é sugestivo e apropriado: Retrato de um populista quando jovem. Não me interessa. Costumo sempre ler a Revista da última página para trás e muitas vezes fico satisfeita e termino na secção Culturas. Procuro sempre notícias sobre livros e muitas vezes rasgo as folhas que me interessam. Talvez me venham a ser úteis mais tarde, quando e se ler aqueles livros.

Gosto de ler José Tolentino Mendonça. Há uma serenidade nas suas palavras e hoje ligo-as ao que li do Torga. Tolentino Mendonça sugere-nos que nos desembaracemos “do equívoco escondido na palavra “ideal”, que em vez do “sempre” e do “nunca” utilizemos o “quase sempre” e “quase nunca” e que façamos uma “conversão do olhar”, lembrando que “O essencial é saber ver… /Isso exige um estudo profundo, /Uma aprendizagem de desaprender.”, nas palavras de Alberto Caeiro.

E depois, Pedro Mexia faz-nos um roteiro pelas Livrarias da sua vida, muitas delas também livrarias da minha vida, da minha adolescência e da minha juventude, quando fui estudante universitária e residia em Lisboa. Destaco a Buchholz e a Barata. Conheci o senhor Barata quando a Barata ainda não era o que é hoje, na avenida de Roma. Ainda me lembro dos rostos dos funcionários que nos atendiam. Sabíamos que eles tinham livros proibidos. Hoje é proibido ir às livrarias, mas por outro motivo, que eu não entendo. A última vez que fui à Barata foi numa segunda feira de Maio, na fase de desconfinamento da primeira vaga da pandemia. Fomos à tarde, a seguir ao almoço e descobrimos com mágoa que o horário era reduzido – layoff, crise a pedir solidariedades – e que a Barata estava fechada às segundas-feiras à tarde! Logo ao lado, a Bertrand tinha uma longa fila de pessoas desejosas de entrar numa livraria, de comprar aquele livro, de voltar a sentir o cheiro do papel, de olhar para as capas dos livros expostos, de folhear, abrir um livro numa página qualquer e ler…

Entretanto, cá por casa já começou o dia e o Gaspar já deixou o aconchego do vão das pernas do seu dono.

14 de Março de 2021

Caderno de Memórias Coloniais, Isabela Figueiredo

13.03.21, Almerinda

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“Caderno de Memórias Coloniais”, Isabela Figueiredo, 2009

Um livro sem rodriguinhos, em que a narradora recorda a sua infância vivida em Moçambique até aos 13 anos e os seus primeiros tempos em Portugal, então já como retornada. Organizado em capítulos, alguns bastante breves e sincopados, são como flashes, diapositivos do colonialismo e da vida colonial.

As personagens centrais deste “Caderno de Memórias Coloniais” são o pai da narradora (uma menina branca) e a própria narradora. O pai é o homem que ela ama e que vai trair (verbo que usa várias vezes ao longo da narrativa) porque renega os comportamentos incompreensíveis, reprováveis e inaceitáveis que ele tinha para com os naturais daquele país de África. Um livro forte, directo, a descascar o complexo colonial de ocupação abusiva e de desrespeito pelo outro, porque o outro é de cor diferente, tem uma natureza inferior, era um animal. “Venham falar-me do colonialismo suavezinho dos portuguesesVenham contar-me a história da carochinha”, diz a narradora quase no final do livro.

Para além de ser um livro desassombrado e honesto, tem honras de prefácios de Paulina Chiziane e de José Gil, já eles dignos de serem lidos e aqui referidos. “Este livro trata das relações de género, do colonialismo e do nacionalismo. Poucas são as obras literárias que tratam destas questões com tanta profundidade.” escreve a escritora moçambicana. E continua: “ Estávamos eu e tu, cada uma no seu lado da barricada, quando o colonialismo aconteceu. Tu, branca, filha de um colono racista e eu, negra, filha de um colonizado, também racista.” Já José Gil assinala, a terminar: “Estas “memórias” são mais do que lembranças, são a própria vida, ontem-agora, a nossa vida de filhos de colonos (ou não) de Moçambique. Neste sentido, o “Caderno de Memórias Coloniais” de Isabela Figueiredo é mais do que um inventário romanceado de factos e acontecimentos: consegue exprimir-nos como se nós, leitores, tivéssemos todos atravessado o que autora experienciou. Nós todos somos “a pequena colona branca” com alma de preta, com a existência estilhaçada e o violento desejo de viver.”

Mas ainda antes dos prefácios, a autora dirige umas palavras prévias a quem a lê, explicando o porquê deste “Caderno”: “Não havia com quem falar sobre as coisas que me interpelavam, nomeadamente as que juntavam e separavam um ser humano de outro. Não existia essa linguagem nem discurso. Ninguém era capaz de me explicar.” (…) “O paradoxo reside no facto de só se ultrapassarem os choques de uma vivência, desenterrando-a, revolvendo os seus restos. O tempo silencioso apenas se abstém de produzir ruído.” (…) “A História enfrenta sempre esse grande óbice, que cabe aos investigadores ultrapassar: o silêncio sobre o que muito se calou ou escondeu. O que não honra. O lixo faz-se desaparecer, os cadáveres emparedam-se e tudo deixa de existir. Não vimos, não sabemos, nunca ouvimos falar, não demos por nada.”

“O “Caderno de Memórias Coloniais” relata a história de uma menina a caminho da adolescência, que viveu essa fase da vida no período tumultuoso do final do Império colonial português. O cenário é a cidade de Lourenço Marques, hoje Maputo, espaço no qual se movem as duas personagens em luta: pai e filha. São símbolos de um velho e de um novo poder; de um velho mundo que chegou ao fim, confrontado por uma nova era que desponta e exige explicações. A guerra dos mundos em 1970.”

“Mas o “Caderno” transcende as questões de poder colonial, racial, social e de género, transformando-se, também, numa narrativa de amor filial conturbado e indestrutível.”

A linguagem é crua, capaz de escandalizar espíritos mais sensíveis. Aliás, o livro foi mal amado por muitos que se viram retratados, mas que não assumem as marcas odiosas do colonialismo e do racismo; mas também foi muito bem recebido “pela crítica, pela Academia e pelos leitores em geral”, tendo sido lido e estudado no mundo inteiro, com várias edições desde 2009, indo já na 9ª edição. Pretas e senhoras (mulheres decentes), pretos e brancos, havia uma clara separação e hierarquização, pelo que embora um branco pudesse casar com uma negra, uma branca assumir uma relação com um negro levaria à inevitável proscrição social. A estratificação estava claramente estabelecida: quem vendia na rua; quem tinha acesso só ao elevador de serviço para ir buscar o lixo do prédio; quem recebia as sobras; quem recebia roupa velha e rasgada; quem se sentava em determinados lugares no cinema e só naqueles.

A filha do electricista que observa tudo e que ouve as conversas do pai com os outros homens e que, quando é mandada para a Metrópole, com a incumbência de contar o que os pretos estavam a fazer aos brancos que só sonhavam transformar África numa Califórnia, sente que traiu o pai porque nunca foi capaz de o fazer. Ou de o fazer, como ele queria. A verdade é que “o tempo dos brancos tinha acabado.”

Há pois, nesta obra, um antes e um depois da independência. A menina branca, filha do colono racista, vai viver para a casa miserável da avó, vai ser a retornada gorda, vai sentir o desenraizamento e o desamor com que é olhada pelos portugueses da Metrópole.

Estes são breves traços do livro e da leitura que faço dele, mas acho que ele ainda fica mais rico com os prefácios com que Paulina Chiziane e José Gil brindaram este livro imprescindível para se fazer a história do colonialismo e racismo português.

5 de Março de 2021

 

8 de Março

08.03.21, Almerinda

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O 8 de Março em tempo de pandemia.

Estamos a breves dias do 8 de Março. Há um ano estivemos na rua, juntas, sem máscaras, nem com cuidados de distanciamentos e abraços. Festejámos com alegria, com a alegria de estarmos juntas a lutar pela igualdade, pelos direitos, pela dignidade das nossa vidas, sem constrangimentos e com a certeza de que há tanto por fazer, sem nunca ignorar nem desprezar o legado de avanços das nossas irmãs lutadoras do século passado e as conquistas decorrentes da democracia alcançada no 25 de Abril de que também nos sabemos sujeito político colectivo.

Este ano, reinventámo-nos. Online, nas redes sociais e também nas ruas. Com a consciência clara de que houve muitas mulheres no nosso país e no mundo que ficaram para trás. Que o desemprego bateu mais forte nelas. Que as violências se exacerbaram e que o confinamento trouxe perigos acrescidos quando a presença física de agressor e vítima se tornou inevitável. Que as mulheres mais vulneráveis e precárias tiveram de se deslocar em transportes públicos onde o distanciamento não existia. Que a luta se tornou mais difícil, porque a nossa força colectiva ficou mais atomizada, dispersa e sem a visibilidade das ruas.

Neste breve texto, gostaria de trazer aqui um estudo do Gabinete de Estudos Sociais da CGTP recentemente divulgado e que atesta o desequilíbrio de género, nomeadamente no que aos rendimentos diz respeito. Segundo esse estudo, no quarto trimestre de 2020, constata-se que as mulheres ganharam menos 14% do que os homens. Quando se comparam os rendimentos mensais e não apenas os salários, o diferencial global foi de 17,8%. Na Administração Pública, as mulheres são apenas 41% do total de dirigentes superiores, embora sejam 61% dos trabalhadores do sector. Em Abril de 2019, cerca de 31% das mulheres recebiam o salário mínimo face a 21% dos homens.  

Segundo a OIT, a actual crise pandémica “está a ter consequências mais negativas em Portugal em termos salariais, do que em outros países da Europa e, particularmente, entre as mulheres trabalhadoras.” De entre os 28 países da Europa que foram analisados, Portugal foi o país onde houve maiores perdas salariais entre o primeiro e o segundo trimestre de 2020, de forma mais agravada entre as mulheres. A média da perda salarial para homens no 2º trimestre de 2020 foi de 11,4%, enquanto a média para mulheres foi de 16%, ainda segundo esse estudo da OIT que envolveu 28 países europeus.

As denúncias destas desigualdades sociais são geralmente o foco do movimento sindical. No entanto, o sistema de opressão que decorre do sistema capitalista tem múltiplas facetas que se expressam no sexismo, no racismo, na homofobia, na transfobia, na marginalização de pessoas com deficiência e idosas. Desta multiplicidade e complexidade de áreas e de campos de acção se ocupam outros movimentos sociais, mas o movimento sindical, pela sua dimensão e abrangência não se poderá alhear destas causas, antes, deve integrá-las, fazendo com que a população se possa rever cada vez mais num sindicalismo de classe, plural, solidário e socialmente interventivo.

Este ano, em plena pandemia, de novo os movimentos sociais e o movimento sindical encontrarão os instrumentos para reivindicar o direito à igualdade, à não discriminação e a determinação de não deixar que a pandemia seja utilizada como instrumento de retrocesso nos direitos das mulheres. Não esquecer que elas são metade da humanidade e que se elas param, o mundo pára.

Viva o 8 de Março.

Almerinda Bento

 

Nota: Este texto foi publicado no Escola Informação nº 30, Fevereiro 2021, do SPGL