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Lendo e escrevendo

Lendo e escrevendo

Uma bomba a iluminar a noite do Marão, Daniela Costa

25.02.21, Almerinda

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Num tempo em que é preciso lutar contra o esquecimento e a erosão da memória, num tempo em que os fantasmas do passado se erguem impantes e sem-vergonha, ganhando os incautos e os deserdados sem esperança e sem perspectivas, é preciso lembrar casos que aconteceram em Portugal. Daniela Costa traz, através deste romance, a memória do assassinato do padre Max e da estudante Maria de Lurdes, faz agora 45 anos. A partir dum facto verdadeiro criou uma série de personagens – Max é Fred, Maria de Lurdes é Paula – trazendo visões, versões, vozes possíveis, traçando uma reconstituição de um crime de ódio à liberdade e à democracia que visou e ceifou as vidas de Max e Maria de Lurdes, na noite de 2 de Abril de 1976, no preciso dia em que foi votada a Constituição da República Portuguesa.

Vila Real anos 70. O peso do isolamento, da pobreza, da Igreja, dos senhores da terra, da ignorância, do analfabetismo e do alcoolismo. Que futuro tinham aqueles/as jovens? A tropa, a guerra colonial, a emigração, o servir, o trabalho sazonal precário e mal pago nas vinhas do Douro. E quando um dia, um homem que falava do Evangelho, lhes começa pela primeira vez a falar em política, lhes abre pela primeira vez horizontes e lhes faz ver que a pobreza pode e deve ser combatida, que os desperta para o seu potencial e para o papel que podem ter para mudar as suas vidas e o mundo, todo o edifício salazarista e atrasado é abanado e posto em causa.

Se a sua missão ultrapassava em muito o seu papel enquanto padre, como professor e mobilizador dos e das jovens, para que se superassem estudando, ajudando outros nos estudos, organizando eventos culturais, o anúncio de que se ia candidatar pelo círculo eleitoral de Vila Real, como independente nas listas da UDP para as legislativas de Abril de 1976, foi o escândalo maior que as forças poderosas da região não mais podiam tolerar. A maledicência, as invejas, os ódios, o moralismo hipócrita já lá estavam a envenenar o ambiente dos que não aceitavam um padre a agitar as consciências e a ganhar estudantes e pessoas das aldeias isoladas, mas a hipótese de uma alteração no quadro político bafiento e retrógrado era insuportável para quem até então tinha tido o monopólio do poder naquela região. As fortes convicções do padre Fred, que no congresso da UDP no Coliseu do Porto tinham ecoado “Nós temos de servir o povo e não servirmo-nos dele” ou as suas palavras “de nada vale falar do bem se não se fizer o bem”, punham em causa os privilégios dos senhores da Casa do Douro, os contra revolucionários acolitados pelo MDLP que manobrava no estrangeiro, que espalhavam o terror incendiando sedes de partidos de esquerda, os dirigentes do CDS e do PPD e a hierarquia da igreja que lhes dava cobertura.

Ciente do perigo que corria, porque as ameaças de morte eram cada vez mais explícitas e insidiosas, tinha a convicção que a escolha que tinha feito em nada colidia com a sua missão como padre. Avisado por amigos para que saísse daquelas terras, que emigrasse para França para junto dos seus pais, Fred desejava que as suas ideias revolucionárias pudessem ser continuadas por quem lá ficasse e daí ter dito a um amigo “Eu amo este povo e quando morrer gostava que espalhassem as minhas cinzas por estas aldeias fora.”

Sem dó nem piedade, na noite de dia 2 de Abril, no regresso das aulas nocturnas no centro cultural, uma bomba assassina fez explodir o carro em que Fred e Paula se deslocavam. Num processo em que cumplicidades com os mandantes do assassinato, instaladas na polícia local e nas autoridades com competência criminal, tudo fizeram para apagar provas e vestígios que permitissem o apuramento da verdade e a descoberta dos criminosos, só 23 anos mais tarde foi provado o crime com motivações políticas. Provada a responsabilidade do MDLP no assassinato, o colectivo de juízes, sem ter provas que pudessem apontar a responsabilidade individual dos arguidos, determinou absolver os réus, com base no princípio de presunção de inocência in dúbio pro reo.

Justiça tardia e incompleta, que permitiu no entretanto espalhar falsidades e enlamear a memória dos mortos. Práticas e expedientes dos que, a coberto da noite, em Portugal, em Espanha e no Brasil, se afadigaram em obstruir a justiça.

No funeral do padre e da jovem estudante, um lençol com as palavras “Não vos mataram, semearam-vos” foi um grito, é um grito que interpela todos quantos amam a liberdade, a democracia e os valores de solidariedade que nortearam as suas vidas.

22 de Fevereiro de 2021

Aniversário

19.02.21, Almerinda

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Há dois anos nasceu este blog. Mais por pressão de amigas do que por alguma vez ter pensado em criar um blog. Ou será um blogue?

Achava que já eram, que a fase deles já tinha passado, mas de vez em quando as vozes voltavam e um dia decidi-me. Acho que se esta ferramenta tem muitas variantes, como acontece com os vírus, a verdade é que eu aprendi numa formação de menos de meia hora o básico e é com o básico que vou funcionando, sem grandes problemas.

Hoje estou aqui só para dizer que faço 2 anos e entrei no terceiro ano de vida. Estes aniversários são sempre confinados, não é por estarmos em pandemia que a coisa muda. Vai-se buscar uma fotografia, escrevem-se umas frases e publica-se para quem quiser saber o que por aqui vai acontecendo e, neste caso, poder dar os parabéns e desejar longa vida se assim entender. 

Eu sou uma das meninas que estão numa prateleira no quarto da AlmerindaAgridoce. Foi com uma fotografia nossa que começámos esta aventura. Somos muitas e ela escolheu-me a mim para aqui estar a dar a cara. Fui feita por uma artesã dum curso para mulheres desempregadas de longa duração no Seixal. Em princípios dos anos 90 do século passado. Talentosa. Alguém que nunca tinha pegado no barro e feito uma peça com as suas próprias mãos. Alguém que com uma idade avançada nunca tinha tido a oportunidade de descobrir o seu talento.  A Almerinda acha-me particularmente bela, expressiva, forte. Chamou-me Vânia. 

19 de Fevereiro de 2021

A Cidade das Flores, Augusto Abelaira

14.02.21, Almerinda

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“A Cidade das Flores”, Augusto Abelaira, 1959

Quando se volta a ler um livro que se leu há mais de quatro décadas, percebemos se ele teve influência nessa altura das nossas vidas, se nos conseguimos identificar com o contexto ou com alguma das personagens, se, apesar da distância, permanece como objecto literário ou, se é de tal forma datado que não consegue despertar interesse para quem hoje o leia, sendo jovem como na altura eu era.

Em 1961, no posfácio à segunda edição de “A Cidade das Flores”, Augusto Abelaira faz uma reflexão e uma série de perguntas que considerei muito relevantes. Começa assim: “ A nova edição de um livro significa que esse livro não morreu”. E mais à frente: “Um livro que se reedita é um livro que se esgotou. Portanto: Quem o esgotou? Quem o leu? E porquê?” (…) “Porque leio eu um romance?” (…) “Independentemente de me ajudar a passar o tempo, a leitura dum romance multiplica em várias direcções a minha pobre vida quotidiana, permitindo-me sonhar.” (…) “Essas histórias… ajudam-me a sair de mim próprio e a descobrir o mundo.” (…) “Os romances preocupam-se com homens vulgares, mais próximos de mim, homens que vivem no meu modesto universo.” (…) “Acontece, porém, que, muitas vezes, buscamos num romance as nossas próprias vidas, as vidas confusas dos nossos irmãos, as nossas preocupações.” (…) “… creio que “A Cidade das Flores” documenta qualquer coisa, a reacção de certos homens a uma praga social – o fascismo; a reacção de certos homens a uma situação social adversa.” (…) “ Homens que não crêem no futuro, ou, melhor: homens que, acreditando no futuro, não têm coragem de viver no presente esse futuro.” (…) “… tenho esperança de que, dentro de cinquenta anos, “A Cidade das Flores” já não seja lida. Significará isso que os problemas deste romance já passaram à história e que os homens deram mais um passo no caminho da justiça social.” (…) “Desejaria que “A Cidade das Flores” fosse entendida como um livro de quem acredita no progresso, na justiça, na paz, na possibilidade real de os homens serem todos iguais.” (…) “E no entanto, nós, cidadãos deste ano da graça de 1961, sabemos que a História, apesar de tudo, não deu razão ao pessimismo de Fazio. Sabemos que o Hitler não dominou por mil anos. Sabemos que nenhum Hitler dominará por mil anos.”

“A Cidade das Flores” decorre na Itália de Mussolini. Os intervenientes são jovens que vivem em Florença, mais ou menos envolvidos na resistência ao fascismo em ascensão. Augusto Abelaira da geração de escritores da oposição a Salazar a escrever no período negro da censura, transpõe neste romance para o meio cultural, social e literário português dos anos 50 uma realidade paralela, usando personagens doutro país e doutro regime ditatorial com preocupações semelhantes e com ânsias de liberdade. Logo no início do romance, Fazio observa um casal de ingleses que tiram fotografias junto à estátua de David. Enquanto se sente escravo, prisioneiro, ele inveja aqueles turistas que para ele representam a liberdade. Fazio, Soldati, Domenico, Rosabianca, Renatta, Vianello e no outro extremo Briganti adepto das ideias de Mussolini. Nas suas conversas, nos seus encontros, os grandes temas que os preocupam. O que é resistir? O que é colaborar? Até onde se consegue resistir? O que é ser incorruptível? O que é ser honesto? Pode-se ser feliz, quando há alguém que está a sofrer, que está a ser torturado, que está preso? As ideias justas triunfarão? Quanto tempo dura o amor? O que é ser livre? É possível ser-se livre?

Achei admirável reler este livro, identificar personagens, diálogos, situações, dúvidas com pessoas, diálogos, situações e dúvidas pessoais e de pessoas que fizeram parte da minha vida e da minha juventude. Senti este romance como intemporal, moderno e actual. No entanto, ao contrário do desejo de Abelaira, de que 50 anos depois daquela 2ª edição do romance ele já não fosse lido, a verdade é que os problemas de que fala o romance não “passaram à história”. A história e o percurso da humanidade estão longe de alcançar a justiça social e os perigos que marcaram o século XX continuam activos e sempre à espera que a democracia baixe as suas bandeiras. Resistir é um imperativo.

12 de Fevereiro de 2021

Almerinda Bento

Anestesiados

01.02.21, Almerinda

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Agora que entrámos em Fevereiro e que prevemos um aumento de novos casos e de mortes pela doença covid até meados do mês, pergunto-me se os paranóicos iluminados/as e sábios/as nas redes sociais irão aumentar a sua actividade ainda mais, ou pelo contrário, começarão a ter humildade e pudor para se calarem. Errático é o adjectivo do momento. Todos os dias se cria um caso novo que é martelado até à náusea. Os números criaram uma anestesia e apatia tais, que nem mesmo os apelos dramáticos de médicos/as e enfermeiros/as conseguem comover. Eu sei que está tudo muito cansado! Eu sei que é difícil manter o equilíbrio e a sanidade mental. Eu sei que a ansiedade é muita. Mas, por favor, organizem-se. Calem-se. Não se armem em deuses omnipotentes e omniscientes. Respeitem quem há 11 meses passa o tempo de máscara a cuidar das pessoas e a tudo fazer para que elas não morram. Fiquem em casa. Leiam. Desenhem. Ouçam música. Arrumem gavetas. Organizem papéis. Rasguem papéis. Organizem fotografias. Telefonem a amigos/as e familiares. Cozinhem. E se saírem de casa, usem a máscara a tapar a boca e o nariz. Afinal, queremos ou não voltar a uma vida normal?