“Bela”, Ana Cristina Silva, 2020
“Bela” é um romance denso em torno da vida e da personagem de Florbela Espanca. Iniciando-se com o suicídio da poeta no exacto dia em que faria 36 anos, percorre toda a vida desta mulher desde o dia 8 de Dezembro de 1894 quando nasce até ao derradeiro dia em que escolheu pôr fim ao seu sofrimento. O romance está dividido em capítulos em que um narrador analisa os sentimentos e estados de alma de Bela e “Interlúdios” em que Bela é ela própria a narradora que se desvenda ao/a leitor/a expondo a sua vida de menina, mulher, apaixonada, infeliz, insatisfeita, sempre em fuga e somente realizada através das quimeras da sua poesia magoada e apaixonada. Infeliz, talvez desde que teve consciência de si, por o pai, o seu primeiro amor, nunca a ter reconhecido como filha. Infeliz, pela frieza rancorosa da madrinha, uma figura dúplice que nunca a tratou como filha. Infeliz, porque todos os homens com quem casou não conseguiram preencher a sua sede de ser desejada, amada e respeitada na sua liberdade. A morte de Apeles, seu amado irmão, foi a queda no desespero e a certeza de que a vida já não tinha sentido para ela.
Numa sociedade preconceituosa, de aparências, em que os papéis masculinos e femininos estavam perfeitamente definidos, a domesticidade a que a queriam moldar, não encaixava na personalidade de Bela. O ferrete de ter nascido de uma relação extra-conjugal, de se ter divorciado duas vezes e iniciado novos relacionamentos amorosos, de ter aspirado a fazer uma carreira literária como “a voz poética feminina de Portugal”, ou seja, uma vida fora dos cânones, marcaram-na como mulher e à sua poesia. Fosse em Vila Viçosa, em Évora ou no Redondo, no Algarve, em Lisboa ou em Matosinhos, locais onde viveu, transportou sempre consigo o peso das más-línguas: “bastarda”, “amantizada”, “adúltera”, “prostituta”, com ideias “malucas”a que os maridos se deviam opor. Os amores falhados que a levaram a divorciar-se e para o que desejava ser compreendida, nomeadamente pelo pai, encontravam uma parede de rejeição e de silêncio. “O meu drama resultava de ter nascido mulher, a minha medonha tragédia pessoal e os juízos morais a que estava sujeita deviam-se mais ao meu género do que ao meu comportamento.” (pág. 150)
O romance nomeia e espraia-se pelos amores de Bela. Desde logo o pai e Apeles, talvez o seu maior amor. O primeiro casamento com Alberto, um antigo colega da escola, um “matrimónio de resignação”, o casamento com António Guimarães “a história de um mergulho nas ondas esverdeadas de um mar traiçoeiro” e por fim o último casamento com Mário Lage, em que sempre se sentiu uma figura secundária. Nas palavras de Bela, “o meu terceiro marido veio a dar-me tantos desgostos quanto os outros.” Gorado que foi o amor com o terceiro marido, outras derradeiras experiências só serviram para aprofundar o desespero do amor inalcançável.
Um belíssimo livro de Ana Cristina Silva focado na personalidade de uma das grandes poetas portuguesas, cujo reconhecimento foi póstumo. Ana Cristina Silva domina de forma perfeita a análise de sentimentos e a caracterização das diversas personagens que fizeram parte da vida de Bela, usando um vocabulário rigoroso, rico e poético. A sociedade portuguesa do primeiro quartel do século XX estaria preparada para valorizar a poesia sofrida desta mulher nascida no Alentejo, que sonhava mais alto do que a charneca em flor? Creio que não. O peso do preconceito era arrasador.
DEIXAI ENTRAR A MORTE
Deixai entrar a Morte, a Iluminada,
A que vem para mim, pra me levar,
Abri todas as portas par em par
Com asas a bater em revoada.
Que sou eu neste mundo? A deserdada,
A que prendeu nas mãos todo o luar,
A vida inteira, o sonho, a terra, o mar
E que, ao abri-las, não encontrou nada!
Ó Mãe! Ó minha Mãe, pra que nasceste?
Entre agonias e em dores tamanhas
Pra que foi, dize lá, que me trouxeste
Dentro de ti?... Pra que eu tivesse sido
Somente o fruto amargo das entranhas
Dum lírio que em má hora foi nascido!...
in “Reliquiae”
21 de Janeiro de 2021