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Lendo e escrevendo

Lendo e escrevendo

A Caixa Negra, Amos Oz

17.11.20, Almerinda

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A Caixa Negra, Amos Oz, 1987

Amos Oz era um escritor desconhecido para mim e foi o impulso de este livro estar a um preço muito simpático que me levou a comprá-lo. O título, a capa e a sinopse ajudaram também.

Não é a primeira vez que leio livros com uma estrutura epistolar, como acontece com “A Caixa Negra” e esse facto também me agradou, mal comecei a lê-lo. As personagens vão surgindo e densificando-se à medida que as cartas trocadas entre eles nos vão sendo reveladas. A partir da primeira carta que vai quebrar um longo silêncio de seis anos após o divórcio entre Llana e Alexander Gideon, vai tecer-se toda uma trama de situações que, ultrapassando o aspecto superficial do drama familiar provocado pelos problemas que o filho de ambos Boaz está a criar, traz um conjunto de aspectos políticos, sociais, religiosos da sociedade israelita, os quais surgem em camadas muito para além do que espoletou a carta inicial.

Cartas, telegramas, longas, breves, as de Boaz cheias de erros ortográficos que nos fazem sorrir, é desta matéria que “A Caixa Negra” é construída. Aquilo que muitas vezes não se consegue verbalizar nem transmitir numa conversa face a face, a escrita e, neste caso, a escrita de cartas permite aprofundar ou tornar visíveis sentimentos e estados de alma das personagens. Elas esmiúçam sentimentos, recordam episódios íntimos e analisam-nos como antes os protagonistas nunca tinham conseguido fazer cara a cara  Apesar da separação, houve algo que nunca foi destruído e esse fio que permaneceu é-nos revelado à medida que a correspondência é trocada entre LLana e Alexander. Como numa investigação a partir duma caixa negra de um avião, estas cartas vão-nos revelando aos poucos as histórias daquelas pessoas, deixando-nos adivinhar ou supor o que levou à separação, ao ódio, ao fim de uma relação. Confesso que a certa altura desejei chegar rapidamente ao fim do livro. As cartas de Michel Sommo o segundo marido de Llana, alguém que se revela ambicioso e muito oportunista, sabendo ser melífluo para levar a água ao seu moinho, passaram a ser-me fastidiosas, cheias de citações bíblicas e de sermões para Boaz. O livro perdeu ritmo e tornou-se cansativo.

Confesso os meus poucos conhecimentos sobre a realidade da sociedade israelita: os conflitos entre judeus e árabes, as divisões de classe que se pressentem entre Alexander e Michel Sommo, as diferenças que existem entre judeus relacionadas com as suas origens e proveniências e daí crer que não consegui retirar do livro todo o sentido que um israelita consegue captar deste livro escrito por um escritor israelita com uma postura política de defesa da paz e de simpatia pela causa palestiniana.

16 de Novembro de 2020

Almerinda Bento

O Dia dos Prodígios, Lídia Jorge

03.11.20, Almerinda

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O Dia dos Prodígios, Lídia Jorge, 1980

Já li vários livros de Lídia Jorge mas, embora tivesse adquirido “O Dia dos Prodígios” em 1984 (!), estranhamente ainda não tinha lido este seu primeiro livro. O facto de ter sido este ano nomeado várias vezes, por comemorar 40 anos da sua primeira edição e por ter lido no prefácio de Guilherme d’Oliveira Martins a “Os Memoráveis” “Lídia Jorge tem, por outro lado, razão quando coloca Os Memoráveis ao lado do seu primeiro romance – O Dia dos Prodígios – tendo a sensação correta de o estar a atualizar”, levou-me a decidir ler “O Dia dos Prodígios” logo a seguir a “Os Memoráveis”.

Não posso deixar de dizer que me causou alguma estranheza, mal iniciei a leitura. Nem foi fácil entrar no espírito da narrativa. A utilização da pontuação muito sincopada com pontos finais constante no meio de frases cuja utilização não corresponde ao que é habitual e gramaticalmente correcto, os diálogos encadeados das personagens pondo o/a leitor/a como testemunha no meio daquelas conversas sobrepostas num registo de oralidade pura, a linguagem que faz sobressair o vocabulário da região algarvia, tudo isso foram traços da escrita que não identificava com a obra de Lídia Jorge já lida.

“O Dia dos Prodígios” decorre em Vilamaninhos, uma aldeia fechada sobre si mesma, atrasada, rural, cujos habitantes mais não têm para além do seu próprio mundo que o mundo dos vizinhos. O progresso para eles está lá longe, em Lisboa. Para além da camioneta da empresa EVA que os leva a Faro, pouco usada porque os deixava amarelos e enjoados preferindo as deslocações em mulas, a telefonia que um dia José Pássaro Volante trouxe para casa são os raros sinais de alguma abertura ao mundo exterior.

E quem são as personagens deste romance? José Jorge Júnior e a mulher Esperancinha são os primeiros habitantes de Vilamaninhos. Já são velhos e estão sozinhos. Dos doze filhos, para além do que morreu, todos partiram para terras distantes.

Carminha, filha de pai incógnito, embora todos soubessem que era filha do padre, sonha que um dia irá casar com um forasteiro, vive com a mãe, longe da maledicência e da coscuvilhice dos vizinhos que espiam os movimentos das duas.

Jesuína Palha é a coscuviheira-mor, alvoroça toda a aldeia com a ficção da cobra que depois de morta cria asas e voa e que é preciso que se descubra onde se escondeu.

José Pássaro Volante e Branca são talvez as personagens mais perturbadoras. Branca teve a noção clara de que aquele homem com quem iria casar lhe iria dar má vida, tal como dava às mulas e às bestas. A brutalidade da relação para quem a mulher e os animais são seres que Pássaro Volante quer amestrar, amesquinhar, domar, quer através da vara, dos estalos, dos pontapés, ou através de uma colcha onde Branca borda um dragão alado com escamas feitas de missangas. A colcha era a prisão de Branca; aquilo de que não era capaz de se libertar. Como dizia o cantoneiro, o único homem que sabia ser amável para com ela, “Ninguém se liberta se não quiser libertar-se.”

Manuel Gertrudes e Macário são outras das personagens que quero nomear. O primeiro, sempre a recordar a sua experiência na guerra de 14-18 e Macário, uma personagem estranha, talvez bipolar, que fala em verso e que tem uma paixão não escondida por Carminha.

Até que um dia, aqueles homens e mulheres ouvem a notícia de que houve uma revolução sem sangue em Lisboa. E com ela a esperança da mudança, da chegada da electricidade, da água canalizada, do saneamento a todo o país e também a Vilamaninhos. De concreto, um dia a chegada de “um carro celestial” nas palavras de Jesuína Palha carregado de soldados, daqueles que se dizia iriam correr o país de norte a sul para ouvir as queixas das pessoas. Só que falaram e mal ouviram os problemas dos Vilamaninhenses, logo de partida para outras terras. No ar, a dúvida, a dificuldade de acreditar na mudança.

“O Dia dos Prodígios” é, quanto a mim o retrato de um Portugal esquecido, analfabeto, um Portugal que o 25 de Abril encontrou e que quis libertar.

Outubro 2020

Almerinda Bento