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Lendo e escrevendo

Lendo e escrevendo

Os Memoráveis, Lídia Jorge

24.09.20, Almerinda

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Os Memoráveis, Lídia Jorge, 2014

É difícil que, quem tenha vivido o 25 de Abril, se identifique com essa data e com o que ela representa, não se emocione com algumas das páginas deste livro de Lídia Jorge. Sendo uma obra de ficção, a autora faz-nos reviver episódios desse dia, servindo-se para isso de personagens que identificamos com alguns dos homens que estiveram ligados a esse dia libertador. Mas dentro da História que identificamos com a história de um povo vai-se entrelaçar a história de Ana Maria a narradora, jornalista da CBS e do pai António Machado, jornalista de referência nos anos da revolução, famoso pelas suas crónicas lúcidas e implacáveis contra o capitalismo e contra o então embaixador americano em Portugal.

Regressando a Portugal ao fim de cinco anos, com a incumbência de recolher material para o argumento para um filme de uma séria intitulada “A História Acordada”, o desafio que foi colocado a Ana Maria é contar a história de uma revolução dos cravos “a única metralha de que se socorreu o povo para derrubar os velhos tipos”. Habituada a missões difíceis em palcos de guerra no Médio Oriente, ela volta à cidade de Lisboa e à casa paterna para construir um argumento em torno de uma revolução pacífica que aconteceu há trinta anos e de que ela própria tem vagas referências ou lembranças.

O pai, como jornalista e protagonista daqueles dias memoráveis, poderia ser uma ajuda preciosa para o seu trabalho, mas a distância que os levou a separarem-se há cinco anos, criou entre eles uma relação baseada em “um não pergunta, para que o outro não pergunte”. Assim, a partir de uma fotografia que o pai guarda no seu escritório, vai abordar os protagonistas presentes num jantar memorável em Agosto de 1975 no “Memories”, para que lhe dêem a sua visão única e pessoal do dia 25 de Abril. Os relatos e o reflexo da passagem do tempo são uma história multifacetada da beleza e da decadência dos que fizeram o 25 de Abril. Se para um tudo aquilo foi um milagre, também há quem não queira dar testemunho para a CBS, ou quem esteja marcado por uma mancha na reputação por uma acusação falsa, quem se queira apagar entre os cinco mil que se puseram em movimento, ou quem tenha enveredado por um mundo de fantasia. De todos os testemunhos, sem dúvida o mais emotivo aquele que é dado pela viúva de Charlie 8 “o rapaz dos tanques e dos chaimites”, aquele que pôs o relógio da história a andar, mas que o regime maltratou, negando-lhe uma pensão que não negou aos torcionários da pide.

Um belo livro evocativo dum momento histórico único e repleto de esperança, não mascarando o apagamento, o desalento, os desencontros, as diferenças e o perigo do esquecimento. Mas que faz ressaltar que os valores da amizade e da solidariedade não se apagam quando os amigos deles mais precisam, quando desistiram da vida.

21 de Setembro de 2020

Almerinda Bento

Embalando a minha Biblioteca, Alberto Manguel

13.09.20, Almerinda

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Agora que Alberto Manguel decidiu doar a sua preciosa biblioteca ao município de Lisboa, recordo aqui o que escrevi há dois anos, quando li este belo livro do autor.

 

Embalando a minha Biblioteca, Uma Elegia e dez Divagações, Alberto Manguel,2018

 

Este livro de Alberto Manguel, nascido na Argentina e com cidadania canadiana tem a estrutura de uma elegia e dez divagações e é motivado por o autor ter sido obrigado a desmanchar e a embalar os cerca de 35 mil livros que constituíam a sua última biblioteca. Esta situava-se em França, num antigo celeiro anexo a um velho presbitério e a um jardim e ali ficaria, não fosse a burocracia que o forçou a partir e a enviar a sua amada biblioteca para o Canadá, onde continua encerrada em caixotes meticulosamente organizados e catalogados por queridos amigos que o ajudaram nessa penosa tarefa. Tratou-se de um enterro prematuro que lhe provocou raiva e luto, porque para o autor “se desembalar uma biblioteca é um acto selvagem de renascimento, embalá-la é sepultá-la ordenadamente antes do julgamento aparentemente final.” (p. 36)

São muitos os temas que desenvolve nessas divagações, desde as suas primeiras memórias ligadas às bibliotecas da infância nas diferentes terras onde viveu, enquanto filho de embaixador, que para ele são “uma espécie de autobiografia com várias camadas”. Revela-nos como os livros da infância e da adolescência que o marcaram para a vida continuam a ter uma força enorme e transportam consigo a presença das pessoas que lhos ofereceram. Jorge Luis Borges é uma referência constante ao longo deste livro, não só pela sua ligação ao escritor como à pessoa com quem trabalhou e a quem leu durante muitas horas quando Borges já perdera a visão. Também D. Quixote de la Mancha, ou seja, Alonso Quijano que se transforma em D. Quixote por via das suas leituras “tendo perdido os seus livros enquanto objectos, D. Quixote reconstrói mentalmente a sua biblioteca e encontra nas páginas recordadas a fonte de uma força renovada”. “A perda ajuda-nos a lembrar e a perda de uma biblioteca ajuda-nos a lembrar quem verdadeiramente somos” (p. 57).

Manguel revela um profundo sentimento de posse relativamente aos livros e a esta sua última biblioteca e daí o forte sentimento de perda, sendo a sua organização tão pessoal que, podendo ser vista por outros como um caos, lhe permitia saber exactamente o lugar de cada livro em cada uma das prateleiras. Escrever sobre este livro não é fácil e é certamente redutor, tantos são os autores referidos e tantas as referências literárias e porque cada divagação é um tema de análise: a necessidade de ligação, de comunicação entre os humanos e a insatisfação permanente; como se inicia o processo criativo e a incapacidade de através de palavras conseguirmos transmitir completamente as nossas ideias ou intenções; as bibliotecas que arderam ou foram destruídas e os autores que foram banidos, o que convoca o papel maldito da literatura e da arte para as ditaduras.

Ele, que gosta do toque dos livros e que é da geração que dava uma enorme importância aos dicionários, questiona-se sobre qual será o papel dos livros não virtuais para as gerações do terceiro milénio que veneram os gameboys ou os iphones e não os livros como objecto físico. O convite que recebeu em finais de 2015 para o cargo de director da Biblioteca Nacional da Argentina colocou-lhe e coloca-lhe problemas decisivos como este numa época em mudança acelerada e constante. Para além duma perspectiva estratégica de ligação às bibliotecas regionais dentro do seu país e de ligação a bibliotecas no estrangeiro, ele, enquanto director da Biblioteca Nacional da Argentina, tem a perspectiva de que uma biblioteca nacional seja aberta, inclusiva, que responda aos diversos interesses e necessidades da população, que atraia novos utilizadores e que mantenha os que já tem e isso é uma tarefa imensa e desafiante que lhe coloca muitas questões para as quais trabalha para responder. Para ele o ideal de biblioteca é que ela seja uma“Clínica da Alma” que funcione como “escola de empatia”.(p. 137)

Em minha opinião, esta grande e inesperada tarefa de dirigir uma Biblioteca Nacional que já antes tinha sido dirigida por Jorge Luis Borges, ajudou Manguel a descentrar-se da sua biblioteca pessoal encaixotada, a fazer o luto e a focar-se numa outra biblioteca, uma biblioteca para todos. Uma verdadeira epifania.

A terminar a última divagação, algumas frases reveladoras: “… o esvaziamento de uma biblioteca, por mais desolador que seja, e o embalar dos seus livros, por mais injusto, não têm de ser encarados como uma conclusão. Há novas ordens possíveis nas sombras, secretas mas implícitas, aparentes tão-só quando as velhas são desmanteladas. Nada que importe pode ser verdadeiramente substituído…” “«No meu fim está o meu começo», terá Maria Stuart, rainha da Escócia, bordado na sua roupa durante o cativeiro. Parece-me uma divisa adequada à minha biblioteca.”(p. 141)

 

1 de Junho de 2018                                   

Almerinda Bento

“Conduz o teu Arado sobre os Ossos dos Mortos”, Olga Tokarczuk

02.09.20, Almerinda

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Conduz o teu Arado sobre os Ossos dos Mortos”, Olga Tokarczuk, 2009

Tal como “Viagens”, este “Conduz o teu Arado sobre os Ossos dos Mortos” da mesma autora, é um livro surpreendente. É um romance passado na Polónia rural, numa povoação perto da fronteira com a República Checa, mais propriamente num pequeno lugar – Planalto – onde apenas três casas são habitadas durante todo o ano, visto que dado o rigor do Inverno, os restantes habitantes vão para a cidade a partir de Outubro. A narradora que detesta que a tratem por Janina porque acha que esse nome não se lhe adequa, dedica-se, entre outras actividades, a fazer a ronda pela terra para verificar se tudo está em ordem, nomeadamente as casas e propriedades que os seus donos lhe deixaram à guarda durante os meses que estão ausentes. Já não é nova e tem Maleitas que tornam por vezes difícil cumprir uma tarefa que se torna mais penosa com a neve e o frio dos longos meses de Inverno. Tinha sido engenheira de pontes na Síria e na Líbia, tinha sido professora e continuava a ensinar Inglês a crianças na cidade uma vez por semana, todas as sextas-feiras recebia a visita de Dyzio com quem trabalhava na tradução de William Blake para polaco, mas a sua grande paixão e dedicação era a Astrologia e fazer os horóscopos das pessoas sempre que sabia o dia e a hora exacta dos seus nascimentos. O chefe da polícia achava que ela era “doida varrida”.

Logo no início do romance, a narradora é acordada pelo vizinho o Papão que a informa da morte do outro vizinho o Pé Grande. Estes são os nomes que ela lhes dá e que correspondem à impressão que eles lhe transmitem. O inusitado da morte de Pé Grande, um caçador furtivo contra o qual ela já havia apresentado várias queixas que caíam no saco roto das autoridades locais e da polícia, engasgado com um osso de uma corça, levam-na a construir uma teoria de que ele tinha sido morto pelas corças, castigando-o da sua actividade de caça furtiva e ilegal. Descobre a data de nascimento de Pé Grande e umas fotografias e vai passar dois serões a estudar o horóscopo do caçador de pés grandes.

As estranhas mortes que se seguem, todas de caçadores locais, vão gerar a insegurança e o pânico entre os habitantes, tanto mais que as investigações não conseguem chegar a resultados. Janina continua a defender tratar-se duma vingança dos animais e reclama contra a ausência de respostas da polícia às suas cartas. Os seus amigos – Dyzio, Papão e Boa Nova – embora não partilhem das suas teorias nem da sua paixão pela Astrologia, são os seus únicos amigos, a sua família, sobretudo desde que as suas Meninas – as cadelas – morreram.

A narradora é uma mulher que se bate pela defesa dos Animais, pela Natureza. Trata cada um como uma entidade, respeitando-os, não se colocando numa posição de superioridade face a eles. Para ela o Homem é um ser livre, não uma peça de uma engrenagem, que se deve reger pelo coração e pela intuição e não por regras estúpidas e rígidas. Ela gostava muito de observar os morcegos com os quais se identificava: “No fundo, eu tinha muita coisa em comum com eles - também via o mundo noutra frequência, de pernas para o ar.” Para uns, uma ave rara, para outros uma bruxa, uma megera, uma velha tonta.

A ingenuidade e a genuinidade da narradora são comoventes e conseguem ser incómodas. Longe de se sentir isolada e não compreendida, ela não pára de denunciar a inoperância da polícia, a hipocrisia do padre Sussurro, as leis irracionais e contranatura, os projectos que só se fazem com os subsídios da União Europeia…

Tratando vários temas muito a sério, muitas vezes com ironia e muito sentido de humor, este livro de Olga Tokarczuk não deixa ninguém quedar-se na paz dos mortos.

1 de Setembro de 2020