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Lendo e escrevendo

Lendo e escrevendo

Ontem foi tempo de fazunchar

23.08.20, Almerinda

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De carro pela EN2, à descoberta de terras e de paisagens que, embora não distantes, ainda não conhecíamos. À medida que se avança no conforto do automóvel, não pude deixar de pensar que o ano passado por ali andou o Afonso Reis Cabral, a meio do seu trajecto de mais de setecentos quilómetros a pé, apoiando-se nos seus bastões e com uma mochila de trinta quilos às costas. Teria apanhado calor, ou chuva e frio quando passou por ali? A verdade é que ainda hoje avalio entre os vários riscos e desafios dessa longa caminhada, as estreitas bermas duma estrada que pensando no automóvel não dão a mínima segurança a um caminhante! Mas em frente. Poucos são audazes como o Afonso!

Já quando tínhamos ido ao Mação ficáramos estarrecidos com o furor dos fogos que nos últimos anos arrasaram aquele concelho. Desta vez, a caminho de Vila de Rei e da Sertã, a mesma tristeza pela desolação da vista de quilómetros e quilómetros de árvores com os troncos de pé, mas pretos e calcinados. Mas toda aquela região e a Sertã são deslumbrantes e boas para uma pausa e um almoço à beira do rio, com vista para as pontes que marcam diferentes épocas da história daquela terra. 

Depois, é seguir rumo a Figueiró dos Vinhos. Parece que foi a beleza de toda a região envolvente e a luz que encantaram José Malhoa e o levaram a escolher aquela terra para viver no seu "Casulo" e para dar asas à sua arte, tal como outros pintores naturalistas com quem conviveu. Figueiró dos Vinhos que ficou na nossa memória pelos terríveis incêndios de há anos, quis, desde o ano passado, apostar numa festa de artes - o Fazunchar - que ajudasse a reerguer todo o potencial e história da terra.  Arte urbana, exposições, instalações, workshops, música, diálogo com os habitantes da terra e das freguesias envolventes, nomeadamente um piquenique comunitário para terminar a festa em beleza.

O nosso foco, para além de conhecer a terra e de reencontrar aqueles que a pandemia não nos tem deixado estar com a frequência desejada, era poder usufruir do percurso e da visita guiada pelas peças de arte urbana fruto dos dois anos de Fazunchar. "Onde a arte faz a festa" diz o folheto de 2020. Com as devidas distâncias físicas, a vida e a arte não podem parar e estes exemplos de resistência e de resiliência são um exemplo de que apesar dos fogos, apesar da pandemia, há que lutar contra a desertificação e isolamento das gentes do interior. 

Parabéns Fazunchar!

22 de Agosto de 2020

 

 

Marquesa de Alorna Querida Leonor

16.08.20, Almerinda

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Marquesa de Alorna - Querida Leonor”, texto de Luísa V. de Paiva Boléo, ilustrações de André Carrilho, 2017

 

Não conhecia esta colecção Grandes Vidas Portuguesas, uma edição da Imprensa Nacional e da Pato Lógico Edições e fiquei interessada em ler este pequeno livro, pois tinha lido “As Luzes de Leonor”, um livro fascinante e uma das grandes obras da escritora Maria Teresa Horta. Esta obra de Luísa Paiva Boléo é uma boa sugestão de divulgação da vida de Leonor de Almeida Portugal de Lorena e Lencastre, 4ª marquesa de Alorna.

É um livro de leitura rápida que começa por fazer a contextualização do período em que D. Leonor viveu, quer em Portugal quer na Europa. Era o século XVIII, as ideias do Iluminismo espalhavam-se pela Europa, mas eram ainda muito incipientes em Portugal. Quando se dá o terrível terramoto de Lisboa de 1755, Leonor tem apenas cinco anos. O seu avô D. Francisco de Assis de Távora que tinha sido vice-rei da Índia e que regressara há pouco a Portugal não cai nas boas graças do rei D. José e sobretudo do seu secretário de Estado do reino Sebastião José de Carvalho e Melo que, aproveitando uma tentativa de regicídio, acusa e persegue a família de Leonor, ficando este caso conhecido na história como o processo dos Távora. Para além das execuções e das muitas prisões, Leonor, a irmã e a mãe são encarceradas no convento de S. Félix em Chelas. Vão ser 18 longos anos que vão ser aproveitados pela jovem Leonor para se instruir e para definir aí o caminho de mulher de letras e de conhecimento que vai perseguir ao longo de toda a vida.

Leonor, a irmã e a mãe só serão libertadas com a morte do rei D. José. D. Maria I, sua filha, irá libertá-la assim como mais de oitocentos presos políticos, sendo que a revisão do processo e a reabilitação dos Távora só ocorrerá alguns anos mais tarde. É o fim do poder do Marquês de Pombal que será demitido.

Leonor tem então 26 anos. Casa-se com um militar alemão. As suas qualidades invulgares de mulher interessada pelas letras e pelas novas correntes do pensamento que vinham da Europa não se coadunavam com a estreiteza de pensamento e atavismo da nobreza portuguesa. Nem o facto de ter tido várias filhas a amarrou a uma domesticidade que pareceria inevitável. Viaja e é admirada em todos os círculos culturais da Europa, ganhando notoriedade em todos os países onde viveu: Áustria, França, Itália, Espanha, Inglaterra. Conheceu gente famosa como Luísa Todi, Mozart, Haydn, Madame de Staël, Correia Garção, Nicolau Tolentino, Bocage, António Feliciano de Castilho, Alexandre Herculano, entre muitos outros. Esteve em Paris e em Marselha quando estalou a revolução francesa.

Tendo tido uma vida longa (1750-1839), atravessou seis reinados, privou com gente influente, influenciou na cultura e na política e destacou-se como uma mulher luminosa, insubmissa e verdadeiramente inovadora, com uma personalidade aberta às grandes mudanças da época. Filinto Elísio dava-lhe o nome de Alcipe quando ela ainda vivia encarcerada em Chelas. Mais tarde, Alexandre Herculano chamou-lhe “a Madame de Staël portuguesa”. Teve muitos títulos, sendo o mais comum ser a 4ª marquesa de Alorna.

Saúdo este livro de divulgação da vida de D. Leonor. Quem quiser de forma pormenorizada aprofundar a vida e personalidade única desta mulher invulgar, aconselho vivamente a leitura de “As Luzes de Leonor” de Maria Teresa Horta. Inesquecível.

15 de Agosto de 2020

Almerinda Bento

 

O Estrangeiro, Albert Camus

14.08.20, Almerinda

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O Estrangeiro”, Albert Camus, 1942

 

Começa-se a ler “O Estrangeiro”, para mim uma releitura, e há uma estranheza, enquanto leitora, que se vai adensando, longe de se vislumbrar o desfecho final. Há um mal-estar nas atitudes e reacções de Meursault, o herói deste romance de Camus, de tal modo que frequentemente me senti como se estivesse a ler Kafka, pelo absurdo, pelo inesperado, pelo imprevisto. Na longa introdução ao livro feita por Jean-Paul Sartre, este chama a Meursault um “herói ambíguo”. Meursault passa pelas coisas indiferente, parece que não tem opinião ou, pelo menos, não a expressa e o patrão acha que ele é um homem sem ambição, pelo menos para o negócio!

Estrangeiro o herói; estrangeiro o leitor. Com uma escrita muito visual, diria mesmo cinematográfica, com frases muito curtas e sincopadas, sem floreados, Camus leva-nos a acompanhar o dia-a-dia de Meursault. Toda a semana, desde que se levanta, vai para o trabalho, almoça no Celeste, regressa ao trabalho, sai do trabalho e volta a casa. Os fins de semana que poderão ser uma ida à praia ou um dia inteiro em casa sem fazer nada. Os barulhos no prédio com os vizinhos. Maria, a namorada, talvez a pessoa mais “normal”, aquela que tem as reacções mais previsíveis do ponto de vista social.

Mas essa rotina só a conhecemos depois, porque o romance começa com a notícia da morte da mãe de Meursault, a viver há três anos num asilo. O enterro da mãe é um momento de quebra da rotina, como será o assassinato involuntário de um árabe, num domingo de praia e de convívio com amigos.

A segunda parte do romance tem a ver com Meursault na cadeia e com todo o processo de preparação do julgamento. Ele não tem medo do que possa ser a sentença. Ele não se sente réu, antes posiciona-se de fora, como espectador do seu próprio julgamento. Ele não se sente como criminoso, sente aborrecimento e não arrependimento. Ele sente-se intruso na sala da audiência, tanto mais que as suas respostas são “inconvenientes”. Ele não se acha culpado, mas tem a sensação de que todos os que estavam no dia do julgamento o detestavam. Ele não percebe o que se está a passar, porque o processo centra-se não no assassinato, mas na sua vida a partir do dia do enterro da mãe. É notória a ironia relativamente à Justiça e à Igreja. Ele não encaixa nem no esquema da investigação enviesada montada pela justiça para o condenar, nem nas tentativas do juiz e do capelão para o converterem.

É sempre bom voltar aos “clássicos”, redescobri-los. Foi o que fiz. Reler um livro, lido há muitos anos, descobrir por que me marcou na altura em que o li.

Termino transcrevendo breves frases da introdução de Jean-Paul Sartre “Explication de L’Étranger” da edição da Unibolso:

Mal saíra dos prelos, O Estrangeiro de Camus obteve a maior aceitação. Toda a gente dizia que «era o melhor livro desde o armistício». No meio da produção literária desse tempo, este romance era, ele próprio, um estrangeiro.”

“E nós próprios que, abrindo o livro, ainda não estamos familiarizados com o sentimento do absurdo, procuraríamos em vão julgá-lo segundo as nossas normas habituais: ele é um estrangeiro também para nós.”

“O encontro do leitor com o absurdo.”

 

Mouriscas, 11 de Agosto de 2020

Almerinda Bento

 

Surpresa

03.08.20, Almerinda

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Às vezes, quando menos se espera ou quando menos se tinha programado... descobrimos aquele livro que nos vai baralhar o esquema pré concebido de leituras. Sou organizada ma non tropo e gosto de me surpreender com as surpresas que encontro pelo caminho.

"A Peste" foi um dos livros que li durante o período que baptizaram de "estado de emergência", sendo o segundo livro de Camus que li. Há muito, muito tempo tinha lido "O Estrangeiro", um daqueles livros que percebemos nos ajudaram a crescer e tentava perceber como me tinha vindo parar às mãos e em que altura da vida. Foi uma alegria quando o encontrei ladeado por outros da Livros Unibolso - Biblioteca Universal e ao lado de outros "irmãos" os Livros de Bolso Europa América. Foram colecções preciosas de divulgação a preços muito bons dos chamados clássicos que li nos inícios dos anos 70 e que levei ou que ficaram pelas Mouriscas, provavelmente porque foram lidos nos meses de calor das férias de Verão. 

Que feliz este reencontro de "O Estrangeiro". Para recordar, para reler.