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Lendo e escrevendo

Lendo e escrevendo

Na bagagem.

31.07.20, Almerinda

É certo e sabido, levo sempre mais roupa e mais livros do que aqueles que vou usar ou ler... mas prefiro jogar pelo seguro. Não esqueço aquele mês em Moçambique em que levei apenas um livro de Richard Zimler. A Sentinela  ou seria Os Anagramas de Varsóvia? 

E depois a ânsia de chegar ao aeroporto de Nampula para comprar um livro para a viagem! Livros , nada. Só em casa da Zita em Maputo onde iniciei O Alegre Canto da Perdiz de Paulina Chiziane que terminei já em Lisboa.   

Agora levo estes. Nao tenho  limitações  de peso na bagagem!

Vamos ver quantos leio e que alegrias me vão dar. 

 

Chamei-lhe Sepúlveda

27.07.20, Almerinda

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Não sou capaz de imaginar uma história para este ganso. Mas a curiosidade e as perguntas são muitas: como é que aqui chegou? Veio sozinho? Por que ficou por aqui? 

Imagino que o Luis Sepúlveda se o tivesse conhecido já tinha criado uma história com ele. Como fez com Rebelde, o caracol que queria ter um nome; como fez com o seu querido Zorbas, o gato grande, preto e gordo que um dia ensinou a gaivota Ditosa a voar e que assim nos ensinou que "só voa quem se atreve a fazê-lo". 

Um dia,  Nils Holgersson encavalitou-se num ganso - Akka de Kebnekaise - e fez uma viagem maravilhosa, que tornou Selma Lagerlöf uma escritora famosa. 

Será que este ganso também fez uma grande viagem até chegar aqui? O ganso que encontro todas as manhãs nas minhas caminhadas até ao Seixal, dizem que chegou e está ali há uns 5 anos. Em frente à Arrentela, numa plataforma que adoptou como sua casa, só sai de lá para se aproximar da margem da baía quando vai buscar comida que ali deixam para ele. Este ganso é uma figura da terra, conhecido e acarinhado por todos que diariamente por ali passam. É um solitário, sem nenhum ganso nas redondezas. Apenas algumas gaivotas, embora não partilhem o espaço da plataforma-casa-jangada. Já ouvi pessoas a chamarem-lhe Zé, mas antes disso eu baptizei-o de Sepúlveda.

Para mim, ele é o Sepúlveda. Porque só Luis Sepúlveda conseguia criar uma história em que nos contasse por que motivo um dia este ganso branco e solitário escolheu esta terra para morar sozinho. 

Rimbaud, o Viajante e o seu Inferno, Ana Cristina Silva

25.07.20, Almerinda

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Rimbaud, o Viajante e o seu Inferno”, Ana Cristina Silva, 2020

 

Tenho poucas ou vagas referências sobre Rimbaud. Lembro-me, quando estudante, de ele ser falado na roda de amigos, certamente citado por poetas e músicos da época – Léo Ferré, Georges Brassens – quando a cultura francesa significava resistência e inconformismo e ainda não tinha sido submersa pela anglo-americana. “Rimbaud, o Viajante e o seu Inferno” foi o primeiro livro que comprei este ano, quando o desconfinamento nos permitiu voltar às livrarias. Era também um desejo de ler o mais recente livro de Ana Cristina Silva, autora cuja obra venho seguindo com muito interesse.

O livro está organizado em capítulos e dividido em duas partes. Em cada capítulo, a narradora (em itálico) faz-nos seguir o percurso de Rimbaud, introduzindo as principais personagens que marcam a vida do poeta: a mãe, Paul Verlaine, Mathilde Verlaine e a irmã Isabelle Rimbaud. Embora Rimbaud tenha sido considerado o expoente máximo do simbolismo, numa altura em que já tinha abandonado a poesia, a verdade é que ele desprezou esse rótulo nem a sua personalidade é catalogável, de tal forma é complexa e fora dos cânones.

Toda a vida em fuga: dos gritos da mãe, da prisão da escola, da ordem burguesa, da disciplina militar, das grilhetas do(s) amor(es), da fome e do frio, do desprezo dos poetas que não o reconhecem como poeta. Toda a vida em busca: do amor, da eternidade, das palavras com que é feita a poesia, do desconhecido.

Inconformista, colérico, contraditório, a busca sem limites das palavras com que fez poesia quando ainda muito jovem foi igual à ânsia de viajar sem limites. Multifacetado e exímio no manejo das palavras – professor de francês, poliglota, tradutor, marinheiro, empregado num circo, alistou-se na legião estrangeira do exército holandês, foi comerciante e até negociante de armas – procurou fugir à fome e à pobreza e por fim ambicionou enriquecer, fazendo uso das palavras para fazer negócios quando já não as queria para fazer poesia.

Para além das paixões de Rimbaud por Paul Verlaine e pela escrava abissínia, a relação mais duradoura foi com o seu criado Djami, tocante na sua dedicação e amor sem limites, a qual foi interrompida quando a doença de Verlaine o obrigou a regressar à Europa. Ana Cristina Silva não nos quer deixar com a impressão de que a relação entre Rimbaud e a mãe era uma relação de amor-ódio sem matizes. Apesar dos gritos, das repreensões e das proibições que invariavelmente levavam Rimbaud a desaparecer da casa materna, o poeta sente que ele acaba por ser o filho favorito, numa casa onde não havia beijos, nem abraços, nem quaisquer traços de afectividade da mãe para com os filhos. Rimbaud estima as irmãs e consegue estabelecer com elas relações de afecto e de cumplicidade, mas a aspereza da mãe, com a qual sempre conviveu desde criança, é-lhe impossível de suportar. Isabelle escreve ao irmão pedindo-lhe que regresse do deserto etíope e que volte a escrever poesia, tendo em conta a velhice e o desgosto da mãe por o filho estar tão distante. Nos seus pensamentos, Madame Rimbaud questiona-se culpando-se por ter sido demasiado severa com os filhos, mas achando que essa foi a melhor forma de os educar.

Esta é uma breve apreciação ao livro. Outros aspectos interessantes do livro que têm a ver com o período em que Rimbaud e Verlaine viveram (2ªmetade do século XIX) e que lhe dão um pano de fundo são, por exemplo, o facto de Rimbaud ter estado envolvido na Comuna de Paris, de ter sofrido a derrota dessa insurreição e de muitos dos seus amigos terem sido fuzilados. Rimbaud foi amputado na perna direita, tendo morrido em Marselha de cancro dos ossos e Verlaine faleceu cinco anos depois, na miséria. Mathilde, jovem esposa de Verlaine, foi vítima de violência doméstica e as suas hesitações em divorciar-se do marido tinham a ver com o facto de a sua reputação ficar manchada para o resto da vida por causa de ser uma mulher divorciada. Naquela época, “tudo o que dava sentido à vida de uma mulher era a estabilidade do matrimónio.” (p. 83)

Desejo que este livro de Ana Cristina Silva venha a ter o devido destaque e divulgação em sessões com a proximidade entre leitores e escritora que o distanciamento social não tem permitido. Parabéns por mais este livro de análise de sentimentos e personalidades, neste caso de um escritor que, como disse inicialmente, desconhecia.

 

23 de Julho de 2020

Almerinda Bento

 

 

 

Pássaros Feridos

11.07.20, Almerinda

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Pássaros Feridos”, Collen McCullough, 1977

 

Certamente por já ter lido alguma apreciação muito favorável sobre este livro, há bastantes anos que ele estava numa “lista de livros a ler um dia” que vai sempre crescendo. A verdade é que ele chegou até mim pelas mãos de uma amiga, como um livro que lera e que a marcara e, finalmente, até porque era volumoso e estava (estou) a viver um período em que muitas das minhas leituras são feitas em casa, chegou a sua vez. Confesso que demorou mais tempo a ler do que esperava, talvez porque tem partes que podiam ter sido suprimidas, sem que o valor da narrativa perdesse.

É uma narrativa que se passa maioritariamente na Austrália, país de onde é natural Collen McCullough, a romancista e neurocientista autora do romance. A decorrer entre 1915 e 1967, o romance está dividido em sete partes, tendo cada uma como título os nomes das personagens femininas da família Cleary e dos homens da vida de Meggie. Podemos dizer que é a saga de uma família, em que a Austrália e a fazenda Drogheda são também personagens do romance. A natureza é exuberante e descrita de forma muito visual: chuvas torrenciais, secas terríveis e prolongadas, tempestades secas, fogos arrasadores, calor, pó e moscas, sem esquecer as rosas ou as buganvílias. Sendo a caracterização das personagens e a complexidade dos seus sentimentos e emoções um ponto alto deste romance, é Meggie desde menina, seguindo o seu desenvolvimento até à velhice solitária na grande fazenda da família, aquela que tem especial centralidade ao longo dos cerca de sessenta anos em que a história se desenrola.

O mundo mudou muito desde as primeiras décadas até perto do último quartel do século passado. A acção passa pela depressão dos anos 30, a fome e o desemprego, as secas, a 2ª grande guerra e o envolvimento da Itália, do Vaticano, da Europa e do mundo, a ditadura dos coronéis da Grécia. Mas para além das mudanças na política no mundo, também as mudanças nos hábitos, nas concepções, nos costumes e atitudes das personagens, na forma como concebem a ideia de família, de amor, de educação das mulheres e dos homens. Desde o início que a autora sublinha aspectos discriminatórios na vida e educação de mulheres e raparigas quando comparadas com homens e rapazes, sendo Justine, a filha de Meggie, personalidade independente e totalmente alheia a convenções, quem corta com as tradições de família e vai seguir o seu destino. Mesmo num meio em que a mulher é educada para ser remetida a um papel subalterno, em que esconder emoções e recalcar sentimentos é o que é expectável, a verdade é que todas as mulheres de Drogheda – Fee, Meggie e Justine – são fortes, intuitivas e lutadoras. Em minha opinião, este é um romance de mulheres, são elas as verdadeiras heroínas.

A terminar, outro aspecto central no romance tem a ver com o poder da Igreja católica, com a questão do dever de castidade que a Igreja impõe aos sacerdotes, recalcando neles o que é da natureza humana, em função de uma obediência exclusiva a um deus. Um aspecto que se mantém nos dias de hoje, atestando a rigidez e conservadorismo da Igreja, embora, de tempos a tempos, vozes isoladas e corajosas ponham em causa a questão do celibato dos sacerdotes como o caminho que mais tarde ou mais cedo será inevitável.   

10 de Julho de 2020

Almerinda Bento

Street Books

07.07.20, Almerinda

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De facto, se se quer ver alguma coisa que valha a pena, é na RTP2.

Por acaso, porque tinha acabado de ver La Otra Mirada e a intenção era apagar a televisão, dei com este documentário maravilhoso que me comoveu.

Um projecto incrível em Portland, Oregon. Streetbooks, ou seja, uma Biblioteca Itinerante.Tão simples e tão lindo como isto: levar livros a quem vive na rua. Pessoas que um dia deixaram de ter dinheiro para pagar a renda e que foram postas na rua. Pessoas que não têm um rendimento que lhes permita ter um tecto, uma casa para viver. Pessoas com 32 anos que vivem na rua desde os 17. Pessoas. Homeless. Sem-abrigo. 

Uma bicicleta onde os livros estão arrumados por temas, por categorias, por autores. Há banda desenhada, filosofia, livros de auto-ajuda, romances, clássicos, livros de arte. Correm a cidade e param junto a pessoas que vivem na rua e põem-lhes à disposição os livros que quiserem levar. Não precisam pagar nada. Só têm de preencher uma ficha, mas sem obrigação de devolver o livro. Mas se quiserem devolver e levar outro(s) a bicicleta estará nesse mesmo sítio na semana seguinte, nas semanas seguintes, para prestar um serviço. Muitas destas pessoas gostam de ler. A cultura é alimento também. É bonito ver como folheiam os livros, como os olhos sorriem, como escolhem, os comentários que vão fazendo, como este: "Levo o King Lear. É o único de Shakespeare que ainda não li". Como falam daquele livro de Camus ou o outro de Steinbeck ou escolhem um que parece que está mesmo novo, nem sequer tem ar de ter alguma vez sido folheado.

Um dos membros desta "comunidade" de streetbook bikers fala da depressão, a grande doença dos sem-abrigo e diz que a ideia do suicídio é frequente entre eles, que ele próprio a viveu. Os livros salvaram-no e, à laia de remate, diz que aprendeu que o suicídio não é saída nem solução. 

Lindo este documentário. Solidariedade, desapego, humanidade e nada, mesmo nada de caridade.