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Lendo e escrevendo

Lendo e escrevendo

A única efeméride da nossa história que hoje merece ser comemorada!

28.05.20, Almerinda

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28 de Maio de 1911

Carolina Beatriz Ângelo torna-se na primeira mulher portuguesa a votar nas eleições para a Assembleia Nacional Constituinte após a revolução de 5 de Outubro, tendo conseguido, ao abrigo da lei eleitoral vigente e após disputa com o poder político, a inclusão do seu nome nos cadernos eleitorais da Comissão de Recenseamento do 2º Bairro de Lisboa. Médica, viúva e mãe, Carolina Beatriz Ângelo invocou a sua qualidade de chefe de família para exercer o voto, só possível aos cidadãos do sexo masculino.

Em 1913, a lei eleitoral portuguesa é alterada, consagrando o direito de voto a cidadãos portugueses do sexo masculino com algumas pequenas e irrelevantes excepções para mulheres.

Em 1933 e em 1946 foram levantadas algumas restrições, mas só quase no fim de 1968, já durante o marcelismo, é que acabaram por ser removidas quaisquer discriminações. No entanto, só depois do 25 de Abril de 1974, com a lei n.º 621/74 de 15 de Novembro, o direito de voto se tornou universal em Portugal

Homenageio hoje, 109 anos depois, com esse facto histórico na história da emancipação das mulheres em Portugal, a figura da médica e da mulher notável Carolina Beatriz Ângelo, a primeira mulher a exercer o direito de voto no nosso país.

Colagem: Carolina Beatriz Ângelo da série 20 Mulheres em 2020

 

Nocturnos, Kazuo Ishiguro

23.05.20, Almerinda

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Nocturnos – Cinco Histórias sobre Música e o Cair da Noite”, Kazuo Ishiguro, 2009

“Nocturnos” é um conjunto de cinco pequenos contos, que têm a música como elemento comum. Veneza, Londres ou as belas colinas de Worcestershire são o cenário para histórias de amores em crise, de carreiras frustradas, de sonhos não concretizados. Histórias aparentemente simples, mas que dão que pensar como geralmente acontece com os contos.

A primeira história tem como título “Crooner”, ou seja, alguém que fala ou canta canções de amor num tom mavioso, lembrando o estilo das canções de Sinatra. Passa-se em Veneza, na Veneza dos turistas, tão diferente daquela silenciosa, parada e de canais novamente despoluídos e sem gôndolas que vemos em vídeos que foram feitos desde que a pandemia assolou a região de Bergamo e do norte de Itália. Uma história de recordação de uma lua-de-mel e de fim de uma relação de vinte e sete anos entre um crooner e a mulher por quem se apaixonou. A ditadura da idade para os famosos do show business e para quem aceita viver sob essa regra. O narrador, guitarrista numa orquestra que toca para turistas na Piazza San Marco, é contratado para uma estranha serenata de despedida.

O tema das preferências musicais da juventude que ligam as pessoas para a vida, mesmo que os anos e novas músicas tenham interrompido essa ligação é o assunto de “Faça Chuva ou Faça Sol”, passado em Londres. Ouvir uma versão há muito esquecida de “April in Paris” por Sarah Vaugham com o trompete de Clifford Brown poderá ser o momento de apaziguamento e reencontro quando o desencontro existe. Neste segundo conto, o narrador professor de Inglês em Espanha, vai a Londres em visita a um casal de amigos que, ao contrário do que esperava, se encontram num processo difícil a viver uma relação conflituosa.

Em “Nocturno”, o narrador é um saxofonista em crise, que sonha liderar uma banda e é pressionado a submeter-se a uma cirurgia estética que o ajude a conseguir ser apreciado pelo público, tantas vezes valorizando mais a imagem do que a arte musical. Será que essa mudança poderá ser um ponto de viragem na sua carreira? Um novo começo?

A casa da irmã e do cunhado em “Malvern Hills” é o refúgio de Verão de um jovem músico que não consegue encontrar uma banda para tocar em Londres. É também a oportunidade de poder compor novos temas, no intervalo do trabalho no café de que a irmã e o cunhado são proprietários, os quais desvalorizam a música e a composição que não consideram verdadeiramente trabalho.

Em “Os Violoncelistas” o narrador recorda bandas com quem trabalhou em que os seus membros eram como uma família, mas que ao desfazerem-se passaram a ser estranhos. Reencontra anos mais tarde um violoncelista que conhecera. Este Tibor nada tem a ver com o Tibor simpático e simples que conhecera sete anos antes.

Este é o segundo livro que leio de Kazuo Ishiguro. Interessante. No entanto, longe de me satisfazer como o inesquecível “Os Despojos do Dia”.

10 de Maio de 2020

Almerinda Bento

Na Patagónia, Bruce Chatwin e Luis Sepúlveda

16.05.20, Almerinda

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Escrito há 6 anos, a lembrar Chatwin e Sepúlveda que partiu há um mês. Certamente os dois divertidos a falar sobre a Patagónia. 

Cá está "Na Patagónia" em dose tripla.

“Na Patagónia”, Bruce Chatwin, 1989
“Patagónia Express”, Luis Sepúlveda, 1995
“Últimas Notícias do Sul”, Luis Sepúlveda e Daniel Mordzinski, 2011

Depois de acabar “Na Patagónia” livro muito aclamado do jornalista inglês Bruce Chatwin, senti uma necessidade imperiosa de ir ao encontro dos dois livros do chileno Luis Sepúlveda sobre essas terras do fim do mundo no extremo sul da América Latina.
A sensação de incompletude do livro de Chatwin ficou apaziguada com a leitura dos dois livros de Sepúlveda sobretudo porque através de retratos fantásticos de personagens que o escritor chileno nos dá a conhecer em “Últimas Notícias do Sul”, escrito 22 anos depois de “Na Patagónia”, Sepúlveda deixa-nos um gosto de nostalgia de um mundo que está a desaparecer e que nunca mais voltará a ser como era. É como que um adeus, um fechar de um ciclo, as últimas notícias de uma Patagónia transfigurada pelo neoliberalismo e que surgem através das palavras de Sepúlveda, quase a fechar o livro “Aquela viagem tinha a marca indelével das despedidas… tudo estava a mudar muito rapidamente e não para melhor.”
Mas voltando ao princípio e ao livro de Chatwin, vale a pena referir o telegrama que o jornalista do Sunday Times Magazine escreveu a demitir-se do jornal: “Fui para a Patagónia.” Aquela paixão por conhecer a Patagónia estava associada, como Chatwin refere logo no início do livro, à sua infância e a um estranho pedaço de pele de um animal pré-histórico que a avó tinha dentro de um aparador. “Na Patagónia” é o relato de uma viagem sem roteiro pré-estabelecido, a viagem de um Chatwin nómada, solitário que desce desde o Rio Negro na Argentina até Ushuaia no extremo sul do continente sul-americano, passando por cidades, povoados, estepes, rios e montanhas, ao encontro dos descendentes dos velhos imigrantes do País de Gales, dos exilados russos, de criminosos nazis, dos esconderijos de foragidos famosos como Butch Cassidy ou Sundance Kid. Sem roteiro pré-definido mas com uma bagagem que confirma aquele amplo espaço da Patagónia argentina como terra de oportunidades e do tango, marcada por histórias de bandidos, de foragidos, de exilados, de pessoas a fugir do seu passado mas também de gente com saudades de uma terra que nunca conheceram, da terra dos antepassados como se da sua terra natal se tratasse. Até que um dia, nesta viagem solitária pela Patagónia, ao explorar uma gruta do milodonte ou preguiça-gigante encontrou “mechas do pêlo áspero e avermelhado que tão bem conhecia. Puxei-os com cuidado, meti-os num envelope e sentei-me, exultando de satisfação. Tinha alcançado o objectivo desta ridícula viagem.”
“Patagónia Express” – apontamentos de viagem – é o relato de diversas viagens “sem itinerário fixo” de Luis Sepúlveda. Partindo também das memórias da sua infância, e de duas promessas que fizera ao avô quando este lhe deu o livro “Assim foi temperado o Aço” de fazer uma longa viagem com “um bilhete para lado nenhum”, o autor dedica dois dos capítulos iniciais do livro a falar brevemente da sua experiência de dois anos e meio na terrível prisão de Temuco. Quebra assim a sua decisão de não tocar na sua experiência dessa obscenidade que foi a ditadura de Pinochet (uma viagem a lado nenhum) e consegue pôr o/a leitor/a rir com alguns episódios que são o testemunho da capacidade de resistir e de sobreviver na adversidade por parte dos seres humanos. A segunda parte do livro trata da viagem atribulada e sinuosa do Sepúlveda exilado, desde que sai do Chile por intervenção da Amnistia Internacional. Passando por diversos países da América Latina, sem dinheiro mas apenas com a intenção de partir para a Europa ou para África é “a viagem de ida”. “A viagem de regresso” fá-la-á Sepúlveda muitos anos mais tarde quando já lhe era permitido regressar ao Chile. Foi a concretização da viagem que ele e Bruce Chatwin haviam planeado há anos num café em Barcelona, para ser feita e escrita a quatro mãos mas que agora o chileno iria fazer sozinho, apenas acompanhado dos Moleskines que Bruce lhe tinha entregado, percebendo que já não teria tempo para acompanhar o amigo chileno nessa viagem.
O último apontamento deste livro é a chegada a Martos, na Andaluzia. Trata-se de um belíssimo e emotivo encontro de Luis Sepúlveda com o tio-avô e é o cumprir da segunda promessa que fizera de um dia ir à terra natal de onde o avô emigrara para o Chile.
Por fim, “Ultimas Notícias do Sul” é um livro de pequenos episódios para saborear com as fotografias de Daniel Mordzinski e resulta de uma conversa dos dois amigos num café de Paris enquanto bebiam um chá-mate. É uma viagem feliz à memória de uma região que eles ainda conheceram antes das mudanças violentas que a economia impõe sobre as vidas dos povos e dos países e que neste caso trouxe o fim das coisas que sempre tinham existido. Ironizando com a pseudo modernização da economia e dos países, nomeadamente através da privatização dos comboios, descobre-se que afinal os serviços não conseguem responder a uma pergunta tão simples quanto é “a que horas parte o próximo comboio para a Patagónia?” É de facto um livro delicioso e quero aqui lembrar Tano, o fabricante de violinos, ou Doña Delia, a senhora dos milagres ou a cena com os turistas texanos cujos dólares pensam que são capazes de “chartear” La Trochita, nome carinhoso dado ao Patagónia Express, com total desrespeito pelas necessidades dos locais que têm nesse meio de transporte a única forma de tratarem dos seus problemas e de resolver as suas necessidades. Mas afinal, o dinheiro não compra tudo nem todos!
Outras leituras sobre a Patagónia certamente virão acrescentar o que me ficou da leitura destes três excelentes livros. Penso que o nosso Gonçalo Cadilhe será o próximo a ajudar-me a fazer este itinerário por essas terras do sul que, mesmo transfiguradas pelo poder do neoliberalismo, sempre deixarão intocado e inviolável o que de mais puro há nas gentes daquelas terras austrais do fim do mundo.

Maio 2014

 

Leva-me contigo, Afonso Reis Cabral

11.05.20, Almerinda

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“Leva-me Contigo”, Afonso Reis Cabral, 2019

 

Há precisamente um ano, Afonso Reis Cabral já ia no troço final da sua grande aventura: fazer a Estrada Nacional 2. Nesse dia 11 de Maio de 2019, em pleno Alentejo, entre Alvalade e Aljustrel, quando já só faltavam 116 kms para chegar a Faro e ver o mar, no seu vigésimo dia de caminhada, talvez já tivesse o nome para este seu diário do caminho. “Leva-me Contigo” tinha sido o pedido que um menino cigano lhe tinha feito na véspera, ao passar pelo Torrão.

Daquilo que sabemos de Afonso Reis Cabral, ele gosta de desafios e este foi gigante. Percorrer a mítica EN2, ou seja, 738,5 kms entre Chaves e Faro. A pé. Sozinho.

Bem, sozinho ele nunca esteve. Foi sempre seguido por quem ao fim do dia ia visitar a sua página de facebook, para acompanhar o que a cada dia acontecia ao Afonso, ao longo dos 24 dias que levou a fazer a totalidade do percurso. E claro, acompanhado pelas pessoas que ia encontrando na estrada e nos campos das diferentes regiões que atravessam o território e também peregrinos a caminho de Santiago ou de Fátima, ele peregrino para o mar. O próprio Afonso valoriza os incentivos que recebia nas mensagens de facebook e que o ajudaram a vencer as dores físicas e as dificuldades de um percurso tão longo e tão exigente, sem dias de descanso, debaixo de chuva e frio intensos ou de sol abrasador. Ouvindo o Stabat Mater de Pergolesi ou o Requiem de Mozart, os seus mortos que o acompanharam foram “miragens sobre a estrada” que o ajudaram, sem esquecer os bastões sugeridos por outros que já tinham a experiência de longas marchas.

À medida que vamos lendo os relatos do diário do caminho, ilustrados com fotografias, com o mapa dos troços diários com os quilómetros respectivos e as mensagens de facebook, apercebemo-nos que vai crescendo uma onda de solidariedade que nunca deixou o Afonso sozinho: os iogurtes, a água, os bilhetinhos, o descanso ao fim do dia, a água com o sal para acalmar os pés, a oferta de um bolo, de um almoço ou de uma cama, tudo isso o Afonso enumera e agradece no Obrigado final. .

Entristeci-me com a notícia da raposa morta na estrada e por saber que aquela linda coruja branca exausta que se deixou apanhar não conseguiu resistir.

Fui uma das pessoas que desde o início torci para que as pernas, a resistência física e psicológica e a capacidade de superação de Afonso Reis Cabral lhe permitissem chegar a Faro e foi com imensa alegria que ouvi na rádio pouco antes da hora do almoço a notícia de que o Afonso tinha chegado. Acredito que milhares de pessoas em todo o país rejubilaram com essa notícia em directo no vigésimo quarto dia daquela prova de resistência.

Afonso Reis Cabral deu-nos a oportunidade de acompanhar o seu esforço no conforto das nossas casas e estou certa que deixou muitos amigos, não só ao longo da RN2, mas por todo o país.

O pedido “Leva-me contigo” marcou a viagem de Afonso, assim como alguns conselhos que lhe deram durante a viagem e que ele partilhou connosco:

Faz o que gostas , segue em frente mas não te esqueças de olhar para trás.”

“Não mintas e não faças tatuagens” ou

“Quando quiser, descanse”.

Sim, Afonso, descanse. Mas não pare e não deixe de nos surpreender com a sua escrita e com os seus projectos.

 

11 de Maio de 2020

Almerinda Bento

A Peste, Albert Camus

10.05.20, Almerinda

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“A Peste”, Albert Camus, 1947

 

Há livros que parece que estão à nossa espera para serem abertos e lidos na hora certa. Foi a leitura de uma crónica num jornal em que se fazia referência a “A Peste” de Camus, que me levou a encontrar este livro, na minha estante, no meio de muitos outros.

Logo no início, o narrador situa-nos num dia de Abril nos anos 40 do século passado em Orão, uma cidade desinteressante como tantas outras: árida, sem pombas, sem árvores, sem jardins em que os interesses dos seus habitantes são fazer negócios e enriquecer. Até que um dia, aparece um rato morto no patamar do prédio onde mora o doutor Rieux. Poucos dias depois tudo está enxameado de ratos mortos. A surpresa inicial dá lugar ao pânico, até que as autoridades ousam pronunciar a palavra peste. As previsões das autoridades sanitárias apontam para a possibilidade de metade da população da cidade vir a morrer. Mas dever-se-á dar toda a informação à população? A cidade não tem soro, aguarda que o mesmo venha de França e, entretanto, é decretado o encerramento da cidade. Para alguns, o assunto é encarado com desinteresse, mas a corrida às lojas e o açambarcamento dos bens de primeira necessidade é o primeiro sinal do medo que se instala definitivamente. Preces colectivas, mercado negro, esquemas mafiosos para fugir da cidade, violências, pilhagens, incêndios, juízos de valor que são suprimidos, especulação nos géneros essenciais, enterros em massa, cansaço das equipas sanitárias, desespero.

O que mais se ouve “Quando tudo isto tiver acabado…” ou palavras como “pico, planalto ou patamar” também aqui nos aparecem, o que revela que o padrão da pandemia daquela cidade Argelina se repete, mas agora em 2020 a um plano e a um nível muito mais alargado porque planetário.

O Dr. Rieux vai interagir com várias personagens que, embora sem formação nem ligação à saúde, são a sua equipa que o acompanha nas suas visitas domiciliárias e que actualiza os registos burocráticos necessários. Apoiam-se, lutam por salvar vidas, emocionam-se, desesperam, confessam-se, questionam-se. O padre Paneloux, que no início da peste fizera um discurso acusador, culpando os homens pela doença que se abatera sobre a cidade, perante o sofrimento e a morte de uma criança inocente, altera o seu discurso e põe em dúvida todas as suas certezas. Afinal será Deus mesmo misericordioso? Jean Tarrou que vai registando num caderno as suas impressões sobre a cidade, como se fosse um historiador, vem mais tarde confessar ao médico numa conversa num terraço de onde se conseguia ver o mar – “um lugar fora da peste” – que um dia decidiu “recusar tudo o que, de perto ou de longe, por boas ou más razões, faz morrer ou justificar que se faça morrer”, numa clara alusão a regimes opressores sustentados em pretensos grandes ideais. Joseph Grand, o eterno precário funcionário da Câmara, leva uma vida ascética e sonha encontrar as palavras certas para se exprimir e para escrever um dia um romance. Rambert, o jornalista apanhado pela peste e que quer sair da cidade para se juntar à pessoa que ama, que se exaspera por não ser atendido achando que as autoridades tomam decisões abstractas sem olhar ao particular, que tudo faz para tentar quebrar o cerco, mas que quando tem a oportunidade de sair, não consegue abandonar os seus amigos. Como era possível ser feliz, quando se tem vergonha de ser feliz sozinho, abandonando quem precisava de si? – assim pensa Rambert quando desiste de sair da cidade. Ao que o Dr. Rieux lhe diz: “Nada no mundo vale que nos afastemos daquilo que amamos”. Afinal o que é a coragem? É morrer por um ideal ou morrer por amor?

Em torno da metáfora da peste, este livro convoca-nos a reflectir sobre o valor dos grandes ideais da humanidade em situações extremas: a amizade, a solidariedade, a paz, a crença num deus, a honestidade, a coragem, as convicções. A morte cuja magnitude e frieza quando vista pelo prisma dos números não deixa de ter o peso e o silêncio de uma derrota sempre que um indivíduo morre.

De repente, dez meses depois do primeiro sinal de peste, ela desaparece. A peste recua e o primeiro sinal é o regresso de ratos à cidade. “A doença partia como tinha vindo.” “Tinha-se apenas a impressão de que a doença se tinha esgotado por si ou talvez de que se retirava depois de ter alcançado os seus objectivos. De qualquer maneira, o seu papel tinha terminado.” Para Rieux, o médico habituado durante aqueles longos meses a conviver com dezenas e centenas de doentes que morreram de peste, a morte do seu amigo Tarrou, já depois de anunciado o fim da peste, foi a derrota definitiva.

No final, quando a cidade ainda receosa festeja com risos e com lágrimas o fim da peste, o Dr. Rieux volta ao terraço já sem o seu amigo Tarrou que nunca sucumbira na busca da paz e da felicidade, com a certeza de que “há nos homens mais coisas a admirar que coisas a desprezar”. Esta nota de esperança na humanidade é temperada com a ideia de que a alegria está sempre ameaçada pois “o bacilo da peste não morre nem desaparece nunca.”

 

8 de Abril de 2020

Almerinda Bento

A Terceira Mãe

03.05.20, Almerinda

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A Terceira Mãe, Julieta Monginho, 2008

De Julieta Monginho já conhecia “ Um Muro no Meio do Caminho” e confesso que de entre a vasta obra da autora, a escolha de “A Terceira Mãe” se deveu ao título e à capa belíssima e não ao facto de este livro ter ganho o Grande Prémio de Romance e Novela APE 2008. “Um Muro no Meio do Caminho” foi um dos grandes livros que li em2019. A escrita de Julieta Monginho e a sua sensibilidade não deixam ninguém indiferente.

Talvez por a estrutura temporal do livro não ser linear, com capítulos curtos em que surgem as várias personagens que constituem o universo de Rosalina e por a leitura do livro ter decorrido neste período estranho de confinamento e de pandemia, possivelmente não aproveitei como devia a qualidade da escrita e nem sempre me foi fácil seguir a leitura, tendo por várias vezes parado e voltado atrás para melhor entender os contextos. Mas a linguagem é de uma delicadeza invejável que gostaria aqui de realçar.

O livro está dividido em 3 partes: Rosalina, Mena e Joana. Avó, mãe, filha. Na primeira parte  ̶  Rosalina  ̶  que é a parte mais extensa do romance, somos logo confrontados com a menina, que com a idade de quatro anos, foi levada de casa dos pais para casa da tia Alice e do tio Celestino. Rosalina é o “espaço vazio” entre os seis irmãos. Uma infância em que passou da Casa de Pedra para a Casa de Colmo onde o tio salazarista não se entusiasmava com o gosto pelas artes da sobrinha e lhe impôs um marido rico ainda menina. Uma menina que se preenchia desenhando e pintando pássaros em fitas de seda: “Os pássaros voavam continuamente. Desenhava-lhes as asas, às vezes só duas pinceladas negras que voavam, nódoa negra sobre o azul. Voava, ficava no pano, nódoa, lágrima. Inchava, a gaveta onde guardava as fitas que podiam prender, atar as mãos, amarrar o cabelo, apequenar os pés até sangrarem como os de uma gueixa. Ou então levarem-na com o vento a dar a volta ao mundo. A gaveta inchava e transbordava à medida que a barriga lhe inchava e transbordava, faixas de seda com asas perdidas, panos sobre panos sobre a vontade de voar. A mais bonita era branca e nela Rosalina tinha desenhado um melro sorridente. Cantava, o pássaro, quando Rosalina lhe fazia cócegas nas penas. Cantava «L’Amour», como ela cantara no primeiro sonho livre. Foi para cantar essa ária que o desenhou.”

Tal como mais tarde se preencherá com o filho Luís, ou com a filha Mena. Ou indo atrás da voz com as rezas à senhora de Fátima, acreditando no seu poder milagreiro para curar o segundo marido. Para trás ficaram os seus dotes no manejo dos pincéis ou no toque do piano. Vivendo, sobrevivendo à depressão, ultrapassando-a, descobrindo sempre alguma coisa nova naquela natureza-morta de Cézanne, cheia de vida. Ela é a D. Lina para o enteado, a D. Lina para o vizinho apaixonado do prédio em frente, a Mamie para a neta Joana.

Rosalina, aquela que percorre serenamente décadas em que o mundo se transforma, se democratiza, se moderniza. O esteio de Mena; o porto de abrigo de Joana. Mena e as suas fúrias e frustrações porque teve de mudar de terra, porque não concluiu o Conservatório, porque teve um marido violento, porque não tem dinheiro, porque não consegue comunicar com a filha. Joana à procura de si, à procura de ser feliz, à procura de crescer como responde à mãe quando esta lhe dizia que ela pertencia a “uma geração à qual nunca foi proibido nada, mas que pode guardar tanta fúria, tanto desespero”. E também a querer fugir de fantasmas, quando esses fantasmas podem estar ligados por uma fita pintada com um melro.

É disto que trata este livro. Um percurso de mulheres. Uma inquietação.

 

30 de Abril de 2020

Almerinda Bento