Saudade
Cada dia é mais evidente que partimos,
Sem nenhum possível regresso no que fomos,
Cada dia as horas se despem mais do alimento:
Não há saudade nem terror que baste.
in "Coral" de Sophia de Mello Breyner Andresen
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Cada dia é mais evidente que partimos,
Sem nenhum possível regresso no que fomos,
Cada dia as horas se despem mais do alimento:
Não há saudade nem terror que baste.
in "Coral" de Sophia de Mello Breyner Andresen
Este foi um 25 de Abril com sabor especial, porque diferente.
Lembro-me perfeitamente como foi há 46 anos. Inesquecível.
O que andas a ler?
A UNESCO instituiu em 1995 o Dia Mundial do Livro.
A data foi escolhida por ser um dia importante para a literatura mundial - a 23 de Abril de 1616 faleceu Miguel de Cervantes e a 23 de Abril de 1899 nasceu Vladimir Nabokov. O dia 23 de Abril é também recordado como o dia em que nasceu e morreu William Shakespeare.
Nestes tempos de confinamento temos mais tempo para ler. Teremos? Ou foge-nos a cabeça e o corpo para outros mundos agora que os dias sao feitos de incerteza e de isolamento?
Este ano ainda só vou no sexto livro. Comecei com Autobiografia de JLPeixoto, depois A Mulher que correu atrás do Vento de João Tordo, Beloved de Toni Morrison, A Peste de Albert Camus, A História de um Caracol que descobriu a importância da lentidão de Luis Sepúlveda e agora ando a ler A Terceira Mãe de Julieta Monginho.
E já agora, volto à minha pergunta inicial: o que andas a ler?
Hoje foi um dia triste, mais difícil neste período de confinamento. Luis Sepúlveda, que sabíamos estar em estado crítico por causa da pandemia, deixou-nos.
Li e comprei vários livros dele ao longo dos anos. De entre os vários contos que constituem "As Rosas de Atacama", detive-me em "O Amor e a Morte" e recordei Zorbas que "com o tempo, passou de nosso gato a ser mais um companheiro, um querido companheiro de quatro patas e melódico ronronar." No meio dos livros, encontrei uma folha com uma História Marginal de Sepúlveda publicada num jornal de um domingo de Junho de 1999, com o título Astúrias, o local que escolheu para viver depois de ter andado por tantas terras. As razões da escolha encontram-se no que ele então escreveu:
"Odeio falar de mim porque nunca quis ser uma personagem, mas que diabo, suponho que o escritor tem de afrontar a sua própria vida. Num dia de 1997 decidi deixar Paris - oh Paris! - para viver definitivamente num lugar do mundo em que me senti seguro: as Astúrias. E a escolha não foi difícil.
Nesta região do Norte de Espanha, aberta ao Cantábrico, nós, os marginais que reivinidcamos o direito à marginalidade, somos bem-vindos. Não existe lugar mais marginal do que as Astúrias. Não há região mais sofrida do que as Astúrias, e para o entender basta estar em Gijón, Langreo, Avilés ou Mieres quando soam as sirenes da tragédia mineira. Acontece - em plena época de bem-estar, na nova ordem internacional - que quando a mina engole um ou mais homens, os serenos vales das Astúrias estremecem numa contorção cósmica. Porém, os asturianos- e eu aprendi tanto com eles, que são duros e ternos, irascíveis e pacíficos, à justa raiva preferem a vontade e a resistência, dois sinais valiosos de identidade.
(...)
Não é difícil ser feliz, dizem os asturianos a partir da sua marginalidade gloriosa que lhes recorda 34, o atroz, quando pensam nas visitas de Franco e de dona Carmen saqueando as tendas de campanha dos derrotados. E eu, como eles, sei que uma pessoa é feliz "desde que escute uma gaita e haja sidra no lagar."
Por fim, trago aqui um breve trecho de um livro delicioso, um dos primeiros que li deste chileno asturiano: "O Velho que lia Romances de Amor".
"Antonio José Bolívar sabia ler, mas não escrever.
O mais que conseguia era garatujar o nome quando tinha que assinar qualquer papel oficial, por exemplo, na época das eleições , mas como tais acontecimentos ocorriam muito esporadicamente, já quase se tinha esquecido.
Lia, lentamente, juntando as sílabas, murmurando-as a meia voz como se as saboreasse, e, quando tinha a palavra inteira dominada, repetia-a de uma só vez. Depois fazia o mesmo com a frase completa, e dessa maneira se apropriava dos sentimentos e ideias plasmados nas páginas.
Quando havia uma passagem que lhe agradava especialmente, repetia-a muitas vezes, todas as que achasse necessárias para descobrir como a linguagem humana também podia ser bela.
Lia com o auxílio de uma lupa, o segundo dos seus pertences mais queridos. O primeiro era a dentadura postiça.
Vivia numa choça feita de canas de uns dez metros quadrados dentro dos quais arrumava o seu escasso mobiliário: a rede de dormir de juta, o caixote de cerveja com o fogão a querosene em cima, e uma mesa alta, muito alta, porque, quando sentiu pela primeira vez dores nas costas, percebeu que os anos lhe estavam a carregar e decidiu sentar-se o menos possível.
Construiu então a mesa de pernas compridas, que lhe servia para comer de pé e para ler os seus romances de amor.
A choça era protegida por uma cobertura de palha entrançada e tinha uma janela aberta para o rio. Era a ela que estava encostada a mesa alta.
Junto da porta estava pendurada uma toalha esfiapada e a barra de sabão renovada duas vezes por ano. Era um bom sabão, com penetrante cheiro a sebo, e lavava bem a roupa, os pratos, os cacos de cozinha, o cabelo e o corpo."
Sepúlveda deixou de estar fisicamente connosco, mas permanece na doçura e na força dos seus livros, assim como nos corações daqueles que já o conheceram através das inúmeras personagens e situações que criou.
4 semanas, 28 dias
E enquanto não escrevo aqui sobre "A Peste", livro de 1947 de Albert Camus, transcrevo aqui um parágrafo do livro, numa fase inicial do mesmo.
"A palavra «peste» acabava de ser pronunciada pela primeira vez. Neste momento da narrativa que deixa Rieux atrás da sua janela, permitir-se-á ao narrador que justifique a incerteza e o espanto do médico, visto que, com cambiantes, a sua reacção foi a da maior parte dos nossos concidadãos. Os flagelos, com efeito, são uma coisa comum, mas acredita-se dificilmente neles quando nos caem sobre a cabeça. Houve no mundo tantas pestes como guerras. E, contudo, as pestes, como as guerras, encontram sempre as pessoas igualmente desprevenidas. Rieux estava desprevenido como o estavam os seus concidadãos , e por isso é necessário compreender as suas hesitações . É por isso que é preciso compreender também que ele se dividisse entre a dúvida e a confiança. Quando rebenta uma guerra, as pessoas dizem: «Não pode durar muito, seria estúpido.» E, sem dúvida, uma guerra é muito estúpida, mas isso não a impede de durar. A estupidez insiste sempre , e compreendê-la-íamos se se não pensássemos sempre em nós. Os nossos concidadãos, a esse respeito, eram como toda a gente: pensavam em si próprios. Por outras palavras, eram humanistas: não acreditavam nos flagelos. O flagelo não está à medida do Homem; diz-se então que o flagelo é irreal, que é um mau sonho que vai passar. Ele, porém, não passa e, de mau sonho em mau sonho, são os homens que passam, e os humanistas em primeiro lugar, pois não tomaram as suas precauções. Os nossos concidadãos não eram mais culpados que os outros. Apenas se esqueciam de ser modestos e pensavam que tudo era ainda possível para eles, o que pressupunha que os flagelos eram impossíveis. Continuavam a fazer negócios, preparavam viagens e tinham opiniões. Como poderiam ter pensado na peste , que suprime o futuro, as viagens e as discussões? Julgavam-se livres, e nunca alguém será livre enquanto existirem os flagelos." (págs. 49 e 50)