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Lendo e escrevendo

Lendo e escrevendo

Beloved, Toni Morrison

30.03.20, Almerinda

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“Beloved”, Toni Morrison, 1987

 

“Beloved”, que deu a Toni Morrison o Prémio Pulitzer em 1988, é considerada uma das obras mais significativas da escritora norte-americana e com grande peso na atribuição do Prémio Nobel da Literatura em 1993.

É um livro poético, forte e duro. Precisa de atenção e concentração, pois, sobretudo ao princípio, há elementos que causam estranheza e que me obrigaram a voltar atrás e a reler para tentar perceber certos elementos. Embora só com o desenvolvimento da narrativa alguma dessa estranheza vá sendo superada com o desvendar de detalhes apenas aflorados inicialmente, tenho de reconhecer em mim, como leitora, a dificuldade de concentração na nova situação de confinamento, por motivo da pandemia do vírus global.

É uma história dura que se passa no período pós-escravatura, depois de terminada a Guerra de Secessão, em que as marcas deixadas pela escravatura são tão fortes que não se apagam, antes corroem e destroem. Enlouquecem quem não consegue esquecer que foi escravo, que tenta aprender a liberdade soltando-se das amarras dum passado indizível. Porque o racismo não desaparece por decreto, nem na atitude do opressor nem na cabeça do oprimido.

“Todos lhe ensinaram como era acordar de manhã e poder decidir o que fazer com o dia. Pouco a pouco… juntamente com os outros, afirmara-se. Libertar-se era uma coisa; reclamar a propriedade do próprio corpo era algo bem diferente” (p. 131)

“Ele sabia exactamente o que ela queria dizer: chegar a um lugar onde se podia amar tudo aquilo que se escolhesse – sem precisar da autorização para o desejo –, ora bem, isso era liberdade.” (p. 217)

Muito poucos tinham morrido na cama, como Baby Suggs, e nenhum daqueles que conhecia, incluindo Baby, tinha vivido uma vida sofrível. Até os negros educados: aqueles que tinham andado muito tempo na escola, os médicos, os professores, os que escreviam nos jornais, os que tinham negócios, até esses tiveram um difícil caminho a percorrer. Para além de precisarem de usar a cabeça para avançar, carregavam aos ombros o peso de toda a raça. Os brancos achavam que quaisquer que fossem os modos, sob cada pele escura existia uma selva. Águas rápidas e intransitáveis, babuínos que se baloiçavam aos guinchos, serpentes adormecidas, gengivas vermelhas preparadas para o seu sangue doce e branco. De certo modo, pensou, tinham razão. Quanto mais os negros se desgastavam a tentar convencê-los que eram amistosos, que eram inteligentes e afectuosos, que eram humanos, quanto mais se cansavam a convencer os brancos de algo que achavam que nem devia ser questionado, mais a selva crescia e se adensava.” (págs. 262 e 263)

É, sobretudo, uma história de mulheres. De raparigas que foram violadas sistematicamente, que tiveram vários filhos de pais diferentes, de mulheres que mataram as filhas à nascença para evitar que lhes  acontecesse o mesmo que a elas, de mulheres grávidas que foram amarradas e açoitadas, de mulheres que foram queimadas, de mulheres que se prostituíram para dar de comer aos filhos, de mulheres reprodutoras para darem filhos para serem vendidos, de mulheres que quase enlouquecerem porque não conseguem esquecer. Sethe, que “traz às costas uma árvore”; Baby Suggs, a memória viva da escravatura, cujo filho lhe comprou a liberdade quando já não lhe servia de nada; Denver, a menina triste, solitária, com saudades dos irmãos, que nasce numa canoa, ajudada por Amy, uma rapariga branca que ia para Boston; Beloved, a menina fantasma que se vem vingar por uma vida que lhe foi roubada. Mas é também uma história de solidariedade das mulheres da comunidade que ultrapassam comportamentos e se juntam quando não pode deixar de ser.

Sendo uma história de mulheres, os homens não estão ausentes e o inimaginável que um ser humano possa fazer a outro, só por uma questão de cor da pele, é-nos revelado por Paul D. Nos dezoito anos em que esteve fora, conheceu os trabalhos forçados acorrentado a outros homens, as canções de trabalho, a prisão, as fugas sempre à procura de um lugar melhor para viver, o sol ardente, as chuvas torrenciais, a lama, a terra, a palha e as cascas das árvores como cama. E quando, pela primeira vez, um branco lhe pediu ajuda para descarregar duas arcas de uma carruagem e no final lhe deu uma moeda, ele ficou a olhar para a moeda e perguntou-se o que fazer com ela.

Uma história dolorosa e complexa, com as marcas da culpa e do remorso, mas com a força redentora de que a solidariedade é a salvação. Mesmo a terminar, o diálogo de Paul D com uma Sethe desinteressada da vida:

“ – Sethe – disse –, tu e eu, temos mais ontens que qualquer pessoa. Precisamos de alguns amanhãs.

Inclina-se para a frente e pega-lhe na mão. Com a outra, toca-lhe no rosto.

 – Tu és a tua melhor coisa, Sethe. És tu. – Os dedos dele seguraram os dedos dela.

– Eu? Eu?” (p. 354)

 

22 de Março de 2020

Almerinda Bento

           

O essencial

24.03.20, Almerinda

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Tudo está a fechar e bem.  Apenas temos aberto o que é estritamente essencial. 

Penso nas livrarias que já são poucas, antes da actual crise. Será que quando este vírus deixar de nos atormentar e quando for preciso colar todos os cacos e erguer de novo este país e a sua tão frágil economia, as livrarias, os livreiros e os livros serão considerados essenciais ou passarão à categoria do dispensável, do acessório, do que pode ficar para depois? Sabendo que em tempo de "normalidade" dificilmente as pequenas livrarias resistiam, afogadas no gigantismo excludente das grandes editoras e distribuidoras, como pensar na sobrevivência das pequenas, das independentes, das que acarinham autores e escritores que não estão debaixo dos holofotes da publicidade e do marketing? Hoje, na sempre excelente crónica matinal de Fernando Alves, retive a imagem dos livros que se vendem ao postigo mesmo quando o isolamento social impede a aproximação e o contacto directo entre quem ama os livros e os livreiros e a ideia de que "ler é uma emergência dentro do estado de emergência".

Em fundo musical "Os livros" de Caetano Veloso.

 

As leituras do momento...

20.03.20, Almerinda

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Quase, quase a acabar "Beloved". Merecia ter tido da minha parte uma maior concentração, um maior carinho e atenção, mas em tempo de pandemia, muitas vezes saltei para outras coisas, interrompi, voltei atrás, perdi-me. Era o livro que levaria para o nosso Clube de Leitura da Bertrand do Chiado do passado dia 16, mas nessa altura já tudo estava a ser cancelado. Nesse dia já tínhamos 331 infectados e era preciso ficar em casa o mais possível. Hoje, quando escrevo este post e no dia em que fiz esta aguarela já ultrapassámos os 1000. Logo que este surto pandémico começar a abrandar e nós pudermos de novo voltar ao convívio do Clube de Leitura, falaremos das nossas experiências neste interregno no espaço e no tempo, enquanto estivemos em isolamento ou quarentena, mas teremos também oportunidade de falar sobre a obra de Toni Morrison, a norte americana que recebeu o Prémio Nobel da Literatura em 1993.

"A Peste" de Camus será o seguinte. Descobri que o tinha na estante, um dos muitos que ainda não tinha lido, apesar de há muitos anos "O Estrangeiro" ter sido um dos livros que me tocou e marcou decisivamente. Foi a referência ao livro no artigo "O vírus da nossa humanidade" de Álvaro Vasconcelos no Público que me levou a procurar no C de Autores Estrangeiros da minha estante e descobrir que "A Peste" estava lá.

E por fim "Diário de Anne Frank". Recentemente trazido de Mouriscas - era um dos livros da minha irmã Bel - porque queria comparar a edição que é uma tradução de Ilse Losa (só pode ser muito boa) com a versão reduzida "The Diary of a Young Girl" da Pearson English Readers. Aliás, na nossa última aula na turma de Inglês da UNISSEIXAL, lemos em inglês, ouvimos o CD e comparámos com o original. Mas, entretanto, tivemos que suspender as nossas aulas. Uma das minhas alunas até comentou por mensagem que a escolha deste livro para as nossas aulas parecia uma premonição quando comparamos o nosso confinamento forçado ao confinamento de Anne Frank. 

Lendo e escrevendo. Foi o nome que dei a este meu blogue que fez um ano em Fevereiro. Às vezes também desenhando. 

Lesson 18 - 17 March 2020

17.03.20, Almerinda

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Caras Alunas, Caro Aluno,

Cá estamos por email e espero estar convosco todas as terças feiras enquanto esta quarentena voluntária ou forçada a isso obrigar. 
Quero dizer-vos que desde quinta-feira fui cancelando tudo e percebi que tudo estava a ser cancelado. Foi claro que não havia condições para fazer o que era habitual fazer-se porque tudo estava e está a ser posto em causa. Para quem compra ou tem acesso ao Público, vale bem a pena ler o artigo O Medo do filósofo José Gil. Eu, a propósito desse artigo, escrevi um texto para o SPGL, assim cumprindo a minha tarefa quinzenal de escrever para o sindicato. Se quiserem ler o meu texto, ele aqui está em anexo.
Pois como sabem temos de continuar a viver e ser muito resilientes, pacientes, fortes, esperançosos e optimistas, não negando a adversidade que se abateu a nível planetário. É mesmo, vai ser mesmo um tsunami. Um dia de cada vez, foi sempre a nossa consigna e agora mais do que nunca e com toda a propriedade. 
Quero dar-vos conta de como estou a viver por aqui. Em casa com o Vítor e o Gaspar. Com todos os recursos que tenho (livros, papel, computador que ficou bom mesmo na véspera da quarentena!, comida, medicamentos para a tensão e para o glaucoma, água, electricidade, ar para respirar, janelas para olhar e ver as árvores a dizerem-nos que a Primavera está aí, melros a darem-me os bons dias logo pela manhã, plantas que temos que cuidar, discos, aguarelas....) e temos imensos, se nos compararmos com os sem-abrigo, com os refugiados, com os pobres. Tenho-me lembrado mais e contactado com aquelas pessoas amigas ou familiares com quem estamos menos. É incrível como este estado de guerra nos aproxima daqueles que tantas vezes esquecemos ou descurámos. 
Comecei um diariozinho. Agarrei num caderninho que a Ana Cansado me tinha oferecido do Brasil, quando veio de uma Reunião Internacional da Marcha Mundial das Mulheres e todos os dias escrevo algumas coisas para memória futura. Nem a propósito, andávamos nas nossas aulas a ler "The Diary of a Young Girl" e a acompanhar como uma adolescente conseguia sobreviver enclausurada no Secret Annexe com mais sete pessoas num período de dois anos, para fugir à besta nazi. Anne Frank e o seu testemunho devem ser para nós um ponto de apoio, quando com o passar do tempo e com as mortes que saberemos pelas notícias, nos começarmos a tornar mais fragilizados e vulneráveis. Como cada uma/um de vós tem o livro e o CD, sugiro-vos que leiam e ouçam o CD ao mesmo tempo e, sempre que tenham alguma dúvida, mandem-me um email. Responder-vos-ei, I promise. Penso que na última aula ficámos em Tuesday, 27 April 1943. Certo?
Além do tal diário, estou a ler Toni Morrison "Beloved". Um livro belíssimo, mas confesso que tenho vagueado muito, parado e não tenho dado a este livro a atenção que ele merece. Mas é natural. A minha cabeça anda dispersa e muitas vezes, a atracção pelo telemóvel, pelo facebook retira-me o prazer que sabem tenho pelos livros. Quando acabar "Beloved" que requisitei na Biblioteca Municipal (não sei como o devolverei porque tudo está a fechar) já pus a seguir "A Peste" de Camus porque penso que tem tudo a ver com o nosso momento presente.
Depois desenho. As minhas duas professoras - Joana Verdelho e Manuela Rolão - estão sempre a incentivar-nos a desenhar, porque só com prática se consegue ter à vontade e evoluir. É como com o Inglês, ou qualquer língua estrangeira. Aceitei o desafio de um desenho por dia durante a quarentena, uma espécie de diário gráfico. O meu primeiro foi uma aguarela muito simples "No meu sofá" que postei no facebook e que o Vítor emoldurou. A ideia é todos os dias fazer um desenho. Vamos ver se sou capaz, mas molduras acabaram... 
Ouvir música. Descansar. Não fazer nada. Tentar pelo menos fazer uma saudação ao Sol, agora que não temos aulas de yôga. Ver filmes, aproveitando para ver aqueles que fomos comprando e que nunca arranjámos tempo para os ver. 
Algumas ideias. Já sabem que fico à espera dos vossos emails. em português, in English, as you like.
Beijos e até daqui a uma semana. 
Nota: à medida que vos ia escrevendo, achei que podia alargar este contacto para fora da minha turma de Inglês da UNISSEIXAL e vou publicar este texto no meu blogue. 
Almerinda
 

“A Mulher que correu atrás do Vento”

12.03.20, Almerinda

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"A Mulher que correu atrás do Vento" , João Tordo, 2019

 

Um romance longo, talvez até demasiado longo, constituído por partes datadas, distantes no tempo, mas que se encaixam e formam um puzzle de muitas peças. Tal como os puzzles, tem zonas mais difíceis de completar, outras mais fáceis, peças enganadoras, personagens sobreponíveis e às vezes, quando pensamos que já estamos a chegar ao fim e temos o puzzle resolvido, há um volte face e percebemos que afinal aquele desfecho do puzzle estava errado. O que é romance? O que é fantasia? O que é realidade? O título do livro e a epígrafe, retiradas do Eclesiastes «Vi tudo o que se faz debaixo do Sol e achei que tudo é ilusão e correr atrás do vento» são a chave deste romance que tem o vento lá dentro.

No longo posfácio, Beatriz, a narradora, dirige-se a quem a está a ler, como que se explica e escreve a certa altura (p. 428) “Qual é o interesse de uma narrativa? Sobretudo de uma narrativa como esta, que já vai longa e confusa, dividida em múltiplas perspectivas, escrita em vários tons, repleta de vozes diferentes e, por vezes, contraditórias? … Chego à conclusão de que esta narrativa – como todas as narrativas – não trata do que é, mas do que poderia ter sido; não do que foi, mas do que deveria ser.” E à pergunta de Luciano sobre o que ela anda a traduzir/escrever, ela reflecte: “Como podia eu explicar-lhe isto, se não com a enorme perda de tempo de que falava Luciano, esta compulsão inútil de que padecem os escritores, aqueles que escrevem mesmo que ninguém os leia, os que escrevem porque, se não o fizerem, continuarão a correr infinitamente atrás do vento? O tempo perdido de que falava Luciano é a coisa mais importante que existe.” (p.431) Quando no último dia de trabalho no escritório de advogados, Luciano quis saber o que Beatriz ia fazer do resto da sua vida, ela respondeu-lhe: “Vou escrever um livro. Ele riu-se com a sua boca de parvo e perguntou-me sobre o que era. E eu respondi que aquela pergunta era a mais ridícula de todos os tempos, porque os livros não eram sobre nada, nunca ninguém escreveu um livro sobre coisa nenhuma. Os livros eram sobre si mesmos, disse eu, sobre o próprio acto de os escrevermos.” (p. 435). Mas, mais à frente, a narradora dirige-se-nos a nós, leitores/as: “Então chega o momento em que eu explico a razão deste livro, que não é sobre o que foi, mas sobre o que poderia ter sido.” (p. 436)

“A Mulher que correu atrás do vento” é um livro sobre a culpa, o remorso, o abandono, a solidão. Um livro que quer resgatar a memória de alguém que ninguém recorda, de alguém que passou pela vida sem ser amado e que partiu cedo de mais. Uma sem-abrigo a quem as instituições não têm a obrigação de dar cama, quando atingem a maioridade. Uma sem abrigo a quem as instituições dão um banho, uma refeição e uma muda de roupa lavada. Lia. Lia poderia ter sido uma mulher com casa, afecto e dignidade.

Beatriz lutava desde o seu tempo de estudante universitária  com a tradução de “Ulisses” de James Joyce, ao mesmo tempo que se divide entre gostar e odiar “A História do Silêncio”, um bestseller na época. Carrega a sua bagagem livresca e literária, não se poupando a referências a personagens que se colam às personalidades das personagens do livro, como por exemplo Lisbeth Lorenz ou Graça Boyard, a Violet Venable de Subitamente no Verão Passado de Tennessee Williams. “A Gaivota” de Tcheckov, a obra de Munch ou de Kafka, os escritores malditos Rimbaud, Baudelaire ou Bukowski, “Crime e Castigo” e os clássicos russos, “Um Eléctrico Chamado Desejo” de Tennessee Williams, ou mesmo o filme “Filhos de um Deus Menor”, entre muitos outros, surgem ao longo das páginas do romance e obrigam-nos a que os revisitemos ou conheçamos, para uma melhor compreensão das inúmeras personagens deste extenso romance de João Tordo.

Termino com mais uma citação que considero pertinente e ajustada ao romance: “As coisas começam num lugar distante no tempo e na geografia e, depois, parecem repetir-se infindavelmente, tal qual um relógio cujos ponteiros atravessam a mesma hora todos os dias. Assim é a vida humana: a repetição dos mesmos erros, dos mesmos atalhos, das mesmas esperanças.”

Mouriscas, 24 de Fevereiro de 20

 

 

 

Estou de volta

12.03.20, Almerinda

Um mês sem computador! Custa mesmo, porque estamos tão dependentes dele como ferramenta de trabalho, de informação. Ontem, finalmente fui buscá-lo, depois de um percalço que o obrigou a voltar ao "hospital" para descobrir o mal profundo que o afectava. Velhinho, mas tem sido um companheiro fiel e sempre presente. 

No dia em que foi anunciado pela OMS que havia uma pandemia, lá me foi entregue são e salvo. 

Olho para a agenda e tanta coisa aconteceu entretanto, mas o mais terrivel mesmo foi a perda de três amigos no espaço de um mês: Zuraida, Saraiva e Conceição. Esses, infelizmente, não irei voltar a tê-los. 

A vida continua, mas o pânico começa a instalar-se. Se não houver um estancar da desinformação, se não houver medidas claras, se a responsabilidade e a calma não comandarem, receio que a premonição da cegueira de Saramago se instale.