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Lendo e escrevendo

Lendo e escrevendo

O admirável mundo digital

09.02.20, Almerinda

“O nosso grau de atenção está a diminuir”

A leitura de uma recente entrevista de Bruno Patino, jornalista francês ao Expresso, a propósito do seu livro “A Civilização do Peixe-Vermelho”, foca temas de grande actualidade, nomeadamente a dependência individual e social dos estímulos e solicitações digitais.

O autor identifica as consequências da dependência generalizada dos écrãns e dos smartphones que nos impede de nos concentrarmos numa tarefa sem que a interrompamos constantemente. Isso está a levar a que “o nosso grau de atenção esteja francamente a diminuir”. Tarefas como ler, estudar, falar e mesmo descansar estão a ser fortemente prejudicadas pela invasão sistemática sobre os nossos cérebros dos estímulos e aplicações a que acedemos através do maravilhoso mundo digital omnipresente. Ligados 24 sobre 24 horas, o que é esperado são respostas rápidas, emocionais e superficiais, quantas vezes sem filtro que nos permita verificar se a mensagem é verdadeira ou não está distorcida. As fake news estão a levar populistas e fantoches ao poder!

Bruno Patino chama-lhe “servidão voluntária” e, embora tenha uma perspectiva optimista, acha que já não é possível voltar para trás. Ele acha que não nos devemos concentrar no que é partilhado ou em quem o partilha, mas sim em como se partilha. E é optimista em relação à capacidade de se diminuir a importância dada aos écrãns e de resistir a essa adição.

A questão que coloco é: quem toda a vida viveu rodeado e subjugado por esta tecnologia digital tem capacidade crítica para seleccionar e para fugir à ditadura do algoritmo que o controla, que responde aos seus interesses, que o manipula a seu bel prazer? Falo daquela criança de meses, que deixa de chorar quando o progenitor lhe põe à frente um brinquedo tecnológico que funciona como a velha chupeta. Falo da criança que, no recreio, em vez de aproveitar para correr e saltar, se senta nos degraus da escola para falar por mensagens com o colega da mesma sala. Falo das famílias que, no restaurante, olham para os seus smartphones enquanto não vem a comida. Falo de nós que postamos qualquer coisa nas redes sociais à espera de sermos vistos, comentados e partilhados. Ficamos ansiosos por saber se as nossas mensagens foram vistas e tiveram “likes”, se não estamos sós ou esquecidos neste mundo em que a comunicação é cada vez mais escassa e mediada por uma máquina que é “smart”.

É o admirável mundo novo!

Quem adivinha o que ando a ler?

04.02.20, Almerinda

Quando começo um livro, vou com ele até ao fim, sem interrupções e sem leituras paralelas. Se o livro não me interessa, não me diz nada, não me prende, acabo por o deixar de parte e com a sensação que dificilmente lhe voltarei a pegar e portanto nunca chegarei a descobrir o que eventualmente ainda poderia dar-me ou dizer-me.

Hoje, sem grandes motivos, para além de ter estado num clube de leitura com a presença de um autor convidado, larguei o livro que andava a ler e comecei um novo livro. Sem grandes motivos? Não é bem assim. Já antes tinha lido um livro escrito por ele, um daqueles livros que têm o condão de nos agarrar. Para mais, fui para a sessão com o livro debaixo do braço e, enquanto o grosso dos viajantes no comboio estavam agarrados aos seus smartphones, eu decidi abrir o livro para ver o que as primeiras páginas me diriam... mas não queria mais do que isso, porque queria ser fiel ao livro que tinha deixado em casa.

Ai! Já estou a chegar à página 50 e agora vai ser difícil parar. Parece que "Essa Gente" vai ter de esperar. Desculpa Chico Buarque.

 

Autobiografia

02.02.20, Almerinda

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Autobiografia, José Luís Peixoto, 2019

Na dedicatória escrita no meu livro pelo autor, está resumida a essência deste livro que acabei de ler: “Para a Almerinda, estas páginas, como um espelho que reflete em muitas direções”. Só à medida que se vai avançando na leitura se percebe o sentido da dedicatória, a capa – um amontoado de papéis cortados e onde surgem separadas as letras que constituem o título do romance: AUTOBIOGRAFIA e o próprio título escolhido pelo autor.

Este é o quinto livro que leio de José Luís Peixoto e talvez um dos mais elaborados e que mais obriga à participação do leitor na compreensão do jogo de espelhos que nos é proposto. E quando, aparentemente, num dos últimos capítulos, o narrador – José – nos dá a chave do enigma, logo a seguir nos interpela “… na literatura, tem de se prestar muita atenção às aparências. Estava farto de juntar palavras? Depois de centenas de páginas escritas, gastam-se os olhos e a cabeça, perde-se algum sentido mas, em grande medida, escrever romances é ser capaz de resistir a esse cansaço. As explicações são uma saída fácil, uma desistência, não acha? A sério, não acha?” , sem que nos deixe o sossego de respostas acabadas. José e Saramago são e não são a mesma pessoa. É deste desconforto, deste desencontro/encontro que vive este romance. As notas que José escreve no seu caderno quando trabalha para escrever a biografia de Saramago, acrescentam mais interrogações à questão sobre o sujeito da “biografia ou, melhor, texto ficcional de cariz biográfico”.

As epígrafes transcritas de textos de José Saramago, desde a primeira que inicia o livro e que vão aparecendo ao longo do romance, são chaves que, ao serem revisitadas, nos ajudam nesta leitura complexa sobre as identidades:

“Não me escondo por trás do narrador” (p. 47); “Há que escolher. Memórias ou romance? Confissão ou ficção?” (p. 69); “Damos voltas e voltas, mas, na realidade, só há duas coisas: ou você escolhe a vida, ou se afasta dela.” (p. 73); “A vida, que parece uma linha reta, não o é” (p.101); “O leitor lê o romance para chegar ao romancista” (p. 116); “O leitor deve ter um papel que vai mais além de interpretar o sentido das palavras.” (p.120). “A literatura é o resultado de um diálogo de alguém consigo mesmo.” (p.284)

 

Ou quando o romance se vai aproximando do fim e José e Saramago dialogam:

“De novo as explicações? Não vale a pena seguirmos esse fio. Mas sempre soube que somos a mesma pessoa? Fiquei com essa desconfiança desde o título, Autobiografia é um espelho, como nós somos um espelho.

Somos?

Sim, somos. No entanto, não confie demasiado nos espelhos, os espelhos distorcem.” (p. 259)

“As explicações não explicam tudo.“

“A literatura é feita de espaços vazios a serem preenchidos por quem os interpreta, é isto? (p.260)

 

José é um jovem escritor no início da carreira literária, às voltas com a angústia de um segundo livro que não consegue escrever. Sem dinheiro, não resistindo ao álcool e ao jogo, endivida-se e é Bartolomeu que lhe vai emprestando dinheiro para sobreviver. Conhece Lídia, caboverdeana, apaixonada por Saramago e pela sua obra desde que o conheceu numa ida do escritor à sua ilha de Santo Antão quando ela tinha dezasseis anos. O seu interesse por José cresce quando ele lhe confidencia que é escritor e que anda a fazer a biografia de Saramago. Saramago é um escritor com 75 anos, em vésperas de ser agraciado como o Prémio Nobel da Literatura.

Os livros de Saramago que as várias personagens desta “Autobiografia” transportam e andam a ler são os elos que as ligam: “Memorial do Convento”, “O Ano da Morte de Ricardo Reis”, “Manual de Pintura e Caligrafia” e por fim “Todos os Nomes” o último livro que Saramago escreveu em 1997, ano anterior à sua celebração como prémio Nobel da Literatura. O meu conhecimento da obra de Saramago é ainda incompleto, mas reconheci nos nomes de Bartolomeu e Lídia referências ao “Memorial do Convento” e a “O Ano da Morte de Ricardo Reis”, tal como o encontro de José e de Saramago no Hotel Bragança não foi por acaso e a cegueira que atinge Fritz na viagem de avião a caminho de Goa para se encontrar com o pai também não, recordando o extraordinário “Ensaio sobre a Cegueira”. Possivelmente outras referências me escaparam!

Por fim, uma referência ao tempo, aos lugares onde as personagens se movem e ao papel desempenhado pelas figuras familiares. Lisboa é diversa, está muito presente e os lugares são muito precisos: Olivais Sul, Encarnação, Quinta do Mocho, Bairro das Colónias, Rua de Macau, Santa Apolónia, Biblioteca Nacional, Palácio das Galveias e a Lisboa da Expo 98. Bucelas onde a mãe de José ficou enquanto o marido emigrou para Frankfurt na Alemanha. Azinhaga onde o pequeno Saramago acompanhava o avô sentado à lareira, vendo e ouvindo a mãe e a avó nas tarefas domésticas, enquanto o pai se entretinha na taberna. Goa na Índia para onde o pai partiu, deixando Fritz e a mãe em Viena na Áustria. Santo Antão em Cabo Verde e Quinta do Mocho. Lanzarote, Lisboa, Madrid, Frankfurt. E Lisboa para onde José, Saramago, Fritz e Lídia vieram viver deixando definitivamente as suas terras da infância. As mulheres, sempre as mulheres: as mães, as avós e Pilar, discreta, mas, solidamente presente.  

Li este romance com bastante vagar. Reli certas passagens. Voltei atrás. Demorei-me. Precisei de me entranhar nele. Senti que tinha de continuar a descobrir o Saramago ainda não lido. Percebi que “Autobiografia” será um daqueles livros a que voltarei um dia, talvez para descobrir outros sentidos que uma primeira leitura não conseguiu alcançar.

30 de Janeiro de 2010

Almerinda Bento