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Lendo e escrevendo

Lendo e escrevendo

Ensaio sobre a Cegueira

31.01.20, Almerinda

Recordando o que escrevi há uns anos, quando li este livro de José Saramago. Nem a propósito, o surgimento da epidemia com origem na China ocorreu quando lia "Autobiografia" de José Luís Peixoto.

 

Ensaio sobre a Cegueira, José Saramago, 1995

Um livro intenso, que só podia ter sido escrito por uma pessoa muito reflexiva e preocupada com a condição humana.

Dedicado a Pilar e à filha Violante, José Saramago reflecte neste romance o amor e respeito que dedica às mulheres que têm neste livro um papel central.

Este livro coloca a sociedade perante um problema, uma epidemia, uma tragédia - a cegueira – e faz-nos percorrer a degradação a que os seres humanos podem chegar em condições extremas. Escolheu a cegueira, mas poderia ser outra coisa qualquer, funcionando como metáfora da ausência de esperança. “A cegueira é viver num mundo onde se tenha acabado a esperança.” E a degradação é o caminho da desumanização, do salve-se quem puder, da selva. Não é por acaso que o local da quarentena é um manicómio desactivado! “ O mundo está todo aqui dentro.” O caos da vida sem perspectivas de saída, o desequilíbrio nas relações de poder mesmo quando todos estão cegos, a violência da cena em que os cegos malvados exigem trocar comida por sexo, a solidariedade entre as mulheres, a nudez dos corpos, o cheiro insuportável a excrementos e comida podre, o medo do contágio, a luta pela sobrevivência, o prazer de um copo de água, a condição infra-humana a que se chega, são alguns aspectos deste livro verdadeiramente inesquecíveis.

Para além das constantes e profundas reflexões sobre múltiplos temas que o autor coloca ao leitor, gostaria de referir a cuidada utilização do vocabulário ao longo de todo o livro, com constantes alusões a expressões quotidianas relacionadas com a visão como “justiça cega”, “mão cega”, “está à vista”, “está-se mesmo a ver” e outras. As sete personagens principais a quem nunca é dado um nome são também referenciadas por algo que se relaciona com os olhos: o primeiro cego, a mulher do cego, o médico (oftalmologista), a rapariga dos óculos escuros, o rapaz estrábico, o velho da venda preta e a mulher do médico, aliás a única personagem que vê e que a certa altura diz “… vocês não sabem, não podem saber, o que é ter olhos num mundo de cegos, não sou rainha, não, sou simplesmente a que nasceu para ver o horror, vocês sentem-no, eu sinto-o e vejo-o…” Para além dos humanos, o cão das lágrimas é, em minha opinião, igualmente uma das personagens centrais deste romance.

Pode-se dizer que este livro nos aponta um mundo apocalíptico e podemos recordar e traçar um paralelismo com situações catastróficas recentes como o Haiti após o terramoto, os regimes de ditadura onde as liberdades são suprimidas, ou as sociedades e países que se confrontam com uma dívida que empobrece os povos e os leva à desesperança, ao desespero e ao suicídio como actualmente já acontece na Grécia, por conta da ditadura dos mercados.

No entanto e, apesar do caos, do horror, do inimaginável, este romance é também um grito de esperança e um tributo à capacidade extraordinária de os seres humanos lidarem com a adversidade.

Frida Kahlo

14.01.20, Almerinda

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"A pintura preencheu a minha vida.

Perdi três filhos e outra série de coisas que teriam podido ocupar a minha vida horrível. Tudo isso foi substituído pela pintura.

Creio que não há nada melhor que o trabalho."

in «Frida Kahlo - uma Vida», Rauda Jamis

Em Dia de Reis uma história diferente

06.01.20, Almerinda

Gaspar, Belchior e Baltasar.JPG

Gaspar, Belchior & Baltasar,  Michel Tournier, 1980

Um livro para ser desvendado em Dia de Reis. Uma revelação. Quem não sabe os nomes dos três Reis Magos? Que prendas levavam? E quais as motivações iniciais? Queriam mesmo homenagear o menino nascido em Belém? E se afinal houvesse outro rei de que não reza a história, porque não chegou a tempo de adorar o menino que, entretanto já tinha partido?

O primeiro narrador é Gaspar, o rei negro de Méroe. Logo no início, o seu astrólogo revela-lhe a chegada de um cometa. Numa ida ao mercado de Baaluk para comprar camelos, compra também dois escravos fenícios, louros, um rapaz e uma rapariga. A verdade é que Gaspar se apaixona por Biltine a rapariga fenícia, mas descobre-se que ao contrário do que diziam Biltine e o outro fenício não eram irmãos, mas sim amantes. O rei ficou desnorteado e o astrólogo sugeriu-lhe que partisse em viagem, que seguisse o cometa e assim esquecesse aquela paixão não correspondida.

No caminho, encontrou Baltasar o rei de Nippur. Baltasar era um esteta. Amante da arte e coleccionador. Era já velho, mas gostava do luxo, do prazer e da alegria. A sua viagem tinha como objectivo adquirir arte. Os tesouros que coleccionara tinham sido destruídos pelo fanatismo do clero que se opunha às imagens, tal como cinquenta anos antes, quando era criança e tinha a paixão de caçar borboletas, lhe tinham destruído a sua mais bela borboleta: a Cavaleiro-Baltasar. A ideia de seguir o cometa, que para os astrólogos era sinal de desgraças, era para Baltasar um bom augúrio. Seguiria a cavalo aquela “borboleta de fogo” e levava mirra que era usada pelos embalsamadores egípcios. Estava a dois dias de chegar a Hébron quando encontrou a caravana de camelos do rei Gaspar.

Por fim, Belchior, o príncipe de Palmira. “Sou rei, mas sou pobre. Estou só, se exceptuar um velho que nunca me abandonou.” O velho é Baktiar, o seu antigo preceptor. Belchior, filho do rei Theodeme teve de fugir de Palmira para evitar a morte certa por parte do tio que usurpou o trono que devia ser dele. Belchior apenas traz consigo uma moeda de ouro com a efígie do pai. De resto, ele e Baktiar não passam de dois vagabundos deslocando-se a pé. Vão encontrar os outros dois reis – Gaspar e Baltasar – em Jerusalém, que aguardam ser recebidos por Herodes. Baktiar vai interceder junto a Gaspar e Baltasar para que Belchior os possa acompanhar e se faça passar por um pajem da sua comitiva.

Herodes é um rei cruel e sangrento, há 37 anos no poder. Está velho, doente e só. Todo o seu reinado foi marcado por discórdia, traições e luta pelo poder por parte da família e da corte e Herodes chega aos 74 anos com um grave problema de sucessão. Herodes recebe os três reis e conta-lhes a história de outro rei Nabunassar III sem sucessor cuja barba foi sendo arrancada pelo a pelo por um pássaro branco para construir o ninho. Para Herodes, o cometa não é senão o tal pássaro branco que o rei Nabunassar perseguiu. Há que seguir esse cometa até Belém onde parece que nasceu o salvador do povo judeu. Herodes nomeia Gaspar, Baltasar e Belchior plenipotenciários do reino da Judeia e pede-lhes que depois de encontrarem esse reizinho dos judeus regressem à corte para lhe contarem o que viram.

 “Caminharam na direcção da estrela eriçada de agulhas no ar gelado. Avançaram com um passo sideral e cada um deles possuía um segredo e uma maneira de andar. Havia o que se deixava embalar pelo furta-passo do seu camelo e que via no céu negro tão-somente o rosto e os cabelos da mulher que amava. Havia o que inscrevera na areia o traço diagonal do trote da sua égua e que via tão-somente no horizonte o borboletear de um grande insecto cintilante. Havia o que andava a pé porque perdera tudo e sonhava com o impossível reino celeste. E os três tinham ainda os ouvidos cheios de uma história pejada de gritos e de horrores que lhes fora contada pelo grande rei Herodes, e que era a história deste, a história de um reino feliz e próspero, bendito pela arraia-miúda de camponeses e artesãos. E os três tentavam imaginar, cada um à sua maneira, o reizinho dos Judeus para o qual Herodes os remetera na companhia do seu pássaro branco.”

Regressados de Belém, de adorarem o menino Jesus, aquela visão de uma criança duma família humilde, aquecida por um burro e um boi, foi para os três reis uma revelação. Os motivos que os tinham conduzido até Belém – o amor, a arte e a política – tinham ficado ofuscados por aquela lição de amor, de respeito pelos outros, de humildade e grandeza. “Mas então tudo se tornava confuso nos seus espíritos, porque esse Herdeiro do Reino misturava atributos incompatíveis, a grandeza e a pequenez, o poder e a inocência, a plenitude e a pobreza. Era preciso caminhar. Ir ver. Abrir os olhos e o coração às verdades desconhecidas, apurar os ouvidos às palavras extraordinárias. Caminhavam, pressentindo com um terno júbilo que talvez uma nova era se estivesse a abrir sob os seus passos.”

É no regresso de Belém e de partida para os seus destinos que encontram Taor, príncipe de Mangalore. Muito jovem, despreocupado, os seus interesses não vão além da arte da pastelaria. O objectivo que o tinha levado a preparar uma caravana de cinco elefantes apetrechada com os melhores doces era encontrar o Divino Doceiro que lhe desse a receita de uma iguaria que tinha provado à base de açúcar e pistácio.

Quando chegou a Belém, Taor já não encontrou o Menino Jesus e os pais que tinham partido para Nazaré. O recenseamento já tinha terminado e Belém estava calma. Enquanto Taor dava um grande banquete com todas as guloseimas que os seus elefantes transportavam às crianças com mais de dois anos no jardim dos cedros, em Belém os exércitos de Herodes massacram todas as crianças recém-nascidas e até aos dois anos de idade. Este acontecimento trágico é o ponto de viragem na vida de Taor, até então tão alheado do mundo real e só virado para os prazeres da doçaria. Decide seguir sozinho e libertar a sua comitiva para poderem regressar a casa. “Metemo-nos numa viagem que prometia ser agradável, prevista, limitada, sobretudo pela frivolidade do seu objectivo. Esta viagem foi assim alguma vez? Tenho dúvidas. Em todo o caso, terminou numa certa noite em Belém, quando as crianças se regalavam e os seus irmãos morriam. A partir daí, foi outra viagem que principiou, a minha viagem pessoal, que não sei onde me levará nem se a cumprirei sozinho ou com um companheiro. Cabe-vos decidir. Não vos despeço nem vos retenho. Sois livres!»

Chega ao Mar Morto e a Sodoma. Apenas o seu tesoureiro guarda-livros o acompanha. Depara-se com o caso de um homem casado e com filhos que foi a julgamento por motivo de uma dívida e que se arrisca a ser condenado à morte. Em face disso, Taor oferece-se para pagar a dívida em falta, mas como o dinheiro que ainda possuia já era muito pouco, fica como prisioneiro a trabalhar nas salinas. Serão 33 anos de trabalho e sacrifício extremos. Entretanto, começa-se a falar de um pregador a quem chamam de Nazareno e que faz milagres, alguns relacionados com alimentos que distribui às multidões que o seguem. Terminada a pena, Taor é libertado e busca o tal Nazareno. Primeiro Lázaro e depois José de Arimateia falam-lhe que Jesus e os amigos estão a celebrar a festa pascal.

Mas mais uma vez, Taor chega tarde. Jesus e os doze apóstolos já tinham abandonado a sala do jantar. Cheio de cansaço e de fome, Taor bebeu algum do vinho deixado nas taças semi-vazias e comeu restos de pão ázimo deixado sobre a mesa. Desfalece, mas é amparado e levado por dois anjos.

A espiritualidade perpassa este livro maravilhoso de Michel Tournier, em que é recriado o tema dos Reis Magos. Gaspar, Belchior e Baltasar seguiram o cometa, movidos pelo amor, pelo poder e pela arte e ofereceram o que tinham – incenso, ouro e mirra – a uma criança humilde a que chamavam salvador do povo.  Taor, um jovem frívolo e impreparado, ganha o papel da personagem que melhor sintetizou o espírito do menino nascido em Belém, sem nunca ter conseguido vê-lo nem chegado perto dele. Buscava o segredo de uma iguaria rara e confrontou-se com o massacre de crianças. O seu sacrifício extremo foi para salvar a vida de um homem que nem conhecia.  O tema da viagem, do confronto com a realidade, da Epifania, aqui protagonizado por alguém que conseguiu ir mais fundo na procura daquilo que realmente interessa e importa e que se pode resumir ao amor desinteressado pelos outros.

Não é meu hábito resumir o que leio. Mas desta vez, não consegui deixar de o fazer. Um livro muito interessante que é uma original recriação das figuras dos Reis Magos. Não três, mas quatro!

Janeiro

02.01.20, Almerinda

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JANEIRO
 
"Navegação do mês de Janeiro. Doce era a navegação do mês de Janeiro, com sua equipagem de Virginia, e frutos. Via-se sempre mais mar, e mais terra, sem nenhum conflito entre eles; escrever tornava-se uma segunda natureza como lavar a cara todos os dias; e as paixões secundárias serenavam..."
in  "Os Rostos do Tempo - Almanaque Llansol"