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Lendo e escrevendo

Lendo e escrevendo

Ingmar Bergman: O Caminho contra o Vento

29.12.19, Almerinda

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Ingmar Bergman: O Caminho contra o Vento, Cristina Carvalho, 2019

 

Pertenço a uma geração que viu grande número de filmes realizados por Ingmar Bergman. Filmes de personagens, com grandes diálogos, marcados por uma cultura e uma paisagem muito distintas daquelas a que estávamos habituados. Cristina Carvalho, neste romance biográfico desvenda-nos um Bergman solitário, voluntariamente isolado, a viver os seus últimos anos, na ilha de Farö no mar Báltico.

A ilha que escolheu para viver em 1960 quando ainda jovem e onde filmou alguns dos seus filmes é agreste, pequena, isolada, muito ventosa, um lugar improvável para alguém querer ali estabelecer-se. Para além dos habitantes da ilha que o acolheram e aceitaram como um dos seus, foi o silêncio apenas quebrado pelos sons das aves, a praia, as rochas, as pequenas flores  do tremoceiro e sobretudo a paz que o atraíram para aquele lugar longe da multidão e do resto do mundo. Agora, já velho, quando sai de casa para o seu passeio pelos trilhos até à praia, ao abrir a porta empurrando-a contra o vento, pergunta-se até quando o conseguirá fazer. O vento é uma constante e as forças já lhe faltam. 

O seu estilo de vida metódico, marcado pela pontualidade, pelo rigor e pela perfeição quer na actividade teatral como director de actores, como realizador de cinema ou na escrita de guiões, esse estilo manteve-o na ilha, já afastado de qualquer actividade profissional. As rotinas diárias quase obsessivas do acordar, do passeio pela praia, do ler, do ouvir música ou de ver filmes no celeiro-cinema em Dämba são rituais que ele ama e que vai fazer praticamente até ao final dos seus dias. Ignorando telefonemas, quase sem contactos humanos, tem apenas de conviver a contragosto com Anita que lhe cuida da casa e lhe prepara as refeições.

No seu diário imaginado faz desabafos. Recorda o pai, um tirano, um padre protestante que só era gentil com os seus paroquianos, mas que vivia para infernizar a vida de Ingmar, do irmão, da irmã e da mãe, para os violentar e para lhes pregar sermões. Atribui ao pai as dores de estômago que desde sempre teve e que associa ao pânico que ele lhe infundia. Um homem maléfico que o levou a abandonar a casa paterna muito cedo. Mas, sem dúvida, foram as figuras femininas omnipresentes no romance e na vida de Ingmar Bergman que foram marcantes na vida e na personalidade do cineasta. A mãe, Karin Bergman, que ele vai associar muito à sua quinta e adorada mulher Ingrid, a avó Anna Calwagen que lhe dava toda a liberdade e as várias mulheres com quem casou, com quem teve relacionamentos diversos ou que passaram pela sua vida. Foram muitas. Mulheres fortes, algumas belíssimas, todas elas artistas em diferentes áreas e géneros, a todas ele amou e manteve com elas uma amizade até ao fim da vida. Muito ausente da vida dos nove filhos das suas seis mulheres, deixou-lhes, no entanto, em testamento, o dinheiro resultante do leilão das casas que construiu na ilha de Farö e que actualmente são geridos por uma fundação e constituem um complexo de equipamentos destinados às artes e a residências de artistas e investigadores da obra e do extenso legado de Ingmar Bergman.

Sendo um romance biográfico, não é uma biografia, pelo que a autora usou toda a liberdade literária para, a partir das pesquisas e de toda a informação que recolheu sobre o cineasta, nos fazer um retrato da personalidade e dos traços gerais da vida de um homem comprometido com um trabalho de elevada qualidade. “Lembro-me de tantos filmes modestos que realizei, tão modestos na sua dimensão artística. Sim, porque eu sei a qualidade de tudo o que fiz”. “ Eu sou, eu fui , um artista.” “Toda esta situação de aprendizagem levou-me muito tempo. O compromisso era comigo próprio. Eu estava decidido a ser grande. Eu seria o maior cineasta do meu tempo e durante muito tempo.” Para quem quiser ler a biografia de Bergman poderá ler “A Lanterna Mágica”, uma curta autobiografia do cineasta. Talvez aí não nos surjam as insónias do velho Bergman assaltado por memórias, medos da infância, frustrações, desamores, incompreensões de muitos conterrâneos que não gostavam dos seus filmes – “não gostam de se ver retratados a nu, sem véus e sem mentiras” – ao contrário dos naturais da ilha que o amavam e consideravam um dos seus, um verdadeiro Faröbo.

Este é o segundo romance biográfico de Cristina Carvalho que leio. Tal como em “A Saga de Selma Lagerlöf”, em “Ingmar Bergman – O Caminho contra o Vento” é palpável a paixão que se estabelece entre a escritora e os biografados e que fica vincada no final dos livros quando a despedida é um luto doce, mas doloroso. Fica a vontade de ler “A Lanterna Mágica”. Fica a vontade de revisitar os filmes de Ingmar Bergman e recordar as suas personagens, as paisagens fustigadas pelo vento agreste e a mestria de um cineasta único que pôs na sua arte tudo o que tinha para lhe dar.

 

28 de Dezembro de 2019

Almerinda Bento

 

 

Ter ou não ter tempo, eis a questão

27.12.19, Almerinda

“O tempo pergunta ao tempo, quanto tempo o tempo tem.

O tempo responde ao tempo que o tempo tem tanto tempo, quanto tempo o tempo tem”

 

O recém-divulgado relatório do Conselho Nacional de Educação é um manancial de análise e reflexão sobre o estado da arte. Os artigos daí resultantes publicados na imprensa e as notícias sobre o excesso de horas que as crianças passam nas creches e infantários e mais tarde nas escolas, levaram-me a reflectir sobre o conceito de tempo.

Antes do mais, o tempo não é um conceito neutro. Está condicionado por vários factores: recursos, posição, estatuto, género. A primeira vez que em Portugal se fez um estudo oficial dos usos do tempo na partilha do trabalho não pago entre homens e mulheres foi em 2002. Nesse estudo estatístico aprofundado “Género e trabalho não pago: os tempos das mulheres e os tempos dos homens”, Heloísa Perista expôs a profunda assimetria nos usos do tempo quando se confrontam as vidas das mulheres e dos homens. Em 2016, o CESIS em parceria com a CITE volta a este tema em “Os Usos do Tempo de Homens e de Mulheres em Portugal”. Desta vez, a equipa de novo liderada por Heloísa Perista aborda o tema em 3 grandes capítulos - Tempo para mim; Tempo em família; O tempo de trabalho pago – e termina com um conjunto de conclusões e recomendações muito importantes. Seria bom que o governo olhasse para elas e lhes desse seguimento.

Neste estudo, as mulheres revelam mais vezes que não têm tempo para fazer tudo o que queriam, não só durante a semana, mas também ao fim de semana. Falta de tempo, andar à pressa, não ter tempo livre de qualidade, estar sempre disponível ou contactável mesmo em férias com emails ou por telemóvel, ter ansiedade ou sentimentos de culpa são sentimentos comuns nos cidadãos e cidadãs dos nossos dias, com reflexos no bem-estar das crianças, obrigadas desde a nascença a um ritmo avassalador que é o ritmo dos pais. Acrescido ao tempo do trabalho pago soma-se o tempo das deslocações casa/trabalho/trabalho/casa, o tempo nos transportes públicos, as filas de espera, os engarrafamentos, os horários irregulares, os turnos rotativos, a exploração ao máximo da força do trabalho, a degradação das condições de vida das pessoas, a precariedade, o receio do desemprego… um cocktail explosivo que torna insuportável a vida, sobretudo nas áreas urbanas e com especial peso na Área Metropolitana de Lisboa. No estudo a que me estou a reportar, 25% dos homens entrevistados têm uma jornada de trabalho total de pelo menos 13 horas e 25% das mulheres de pelo menos 14h e 45minutos.

Como é então possível conciliar os horários de trabalho com a vida pessoal e familiar, quando os horários de trabalho se chocam com os horários da creche, do infantário e da escola, muitas vezes um depósito de crianças que aguardam os pais e com os quais irão estar um tempo mínimo de tempo, antes de irem para a cama? “4 em cada 10 pessoas consideram que o seu horário de trabalho não se adapta muito bem, ou mesmo nada bem, aos compromissos familiares, pessoais ou sociais que têm fora do seu trabalho.” (pág. 146). A longa luta pela redução da jornada de trabalho para as 8 horas que fez neste ano 100 anos e que se traduzia na fórmula 8 horas de trabalho/8 de descanso/8 de lazer tem sido torpedeada pelo patronato, sempre sequioso do lucro e da máxima exploração da força do trabalho. Em 1930, John Keynes previa que os seus netos iriam trabalhar 6 horas por dia… nos anos 80 com o ascenso dos computadores era a utopia de mais tempo para o lazer. Hoje o tempo de lazer e o tempo de trabalho entrelaçam-se, porque é preciso “estar disponível” a qualquer hora, é o tempo da flexibilização do tempo de trabalho, o tempo de descanso dos trabalhadores foi reduzido entre 21 e 30% e o Código do Trabalho não acautela os direitos do trabalhador ao lazer e à vida privada. O capitalismo não abre mão da sua posição e o governo escolhe o seu campo: o do patronato. Em vez de garantir o direito ao descanso, compatibilizando-o com a diversidade de formas de trabalho, respeitando a dignidade do trabalho e dos trabalhadores, o governo cede em toda a linha, pondo-se do lado dos patrões.

Voltemos então às crianças, às creches, infantários e escolas. As crianças portuguesas passam mais 10 horas na creche que as outras crianças da Europa. Só a Eslováquia e a Croácia nos superam. Para um desenvolvimento harmonioso das crianças, para a sua socialização e autonomia, as crianças precisam de equipamentos públicos de qualidade e em quantidade, mas não de depósitos onde os pais deixam os filhos para irem trabalhar. “O número médio de horas semanais, que as crianças portuguesas com menos de três anos passam em educação e cuidados para a primeira infância (39,1 horas) é dos mais elevados entre os países da UE, cuja média semanal de permanência é de 27,4 horas)”, citando o último relatório sobre o Estado da Educação. A Carta Social do Ministério do Trabalho e Segurança Social relativamente à rede de equipamentos sociais refere que 45% das crianças que estavam em creches em 2018 passavam até oito horas por dia na creche e 46% entre oito e dez horas diárias. Se compararmos as recomendações da Ordem dos Psicólogos que aconselham que as crianças até aos 2 anos devem estar na creche durante a manhã, ou as crianças entre os 2 e os 3 anos deverão estar entre 4 a 6 horas, logo tiraremos a conclusão de que os direitos e o interesse superior da criança não estão nem acautelados nem respeitados.

Concluindo: é impossível ser-se feliz e saudável quando o tempo, em vez de ser respeitado, é um espartilho. A este garrote do capitalismo, que quer retirar aos trabalhadores e trabalhadoras o direito a gerir harmoniosamente o tempo, só há uma saída: lutar, lutar sempre.

(Nota: este texto foi publicado no Escola Informação do SPGL, de Dezembro de 2019)

 

A um Deus Desconhecido

17.12.19, Almerinda

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A um Deus Desconhecido, John Steinbeck, 1933

A escolha deste mês do Clube de Leitura da Bertrand do Chiado recaiu em John Steinbeck e na sua obra. De entre os muitos títulos deste autor que recebeu o Prémio Nobel da Literatura em 1962, a ideia era trazer a diversidade dos temas a partir das escolhas que cada membro do clube decidisse fazer. Daquilo que li em tempos remotos quando estudante de Literatura Norte Americana, certamente constava Steinbeck, mas a verdade é que qualquer lembrança se perdeu na memória. “A um Deus Desconhecido” foi o que encontrei na minha biblioteca na zona da literatura estrangeira e foi isso que partilhei na roda de conversa do nosso clube.

Um livro perturbador, em que o centro é a natureza, a terra e a relação dos humanos com ela. Joseph Wayne é jovem e tem a ambição de ter terra própria. Parte para oeste, para a Califórnia, onde há grandes extensões de território à espera de quem lá se queira fixar. Joseph deixa o pai por quem tem uma forte ligação e os três irmãos e respectivas famílias. Escolhe para se estabelecer, construir casa e criar raízes um largo vale verdejante e promissor, embora desde logo o tenham alertado que nem sempre foi assim, visto ter havido em tempos uma seca terrível que queimou e deixou tudo seco. Nesse vale começa a construir próximo de um grande carvalho que, para ele, corporiza o pai, como se o pai o habitasse. Essa sensação vai tornar-se cada vez mais forte após a notícia da morte do pai. Chama os irmãos para junto de si, desejoso de partilhar com eles o sonho de poderem viver e partilhar aquela terra fértil. Sendo todos muito diferentes, a figura de Joseph é, no entanto, central e respeitada, porque comporta em si as semelhanças com a personalidade do patriarca. Burton, obcecado pela religião, é sectário, moralista e não aprova Joseph que considera estar dominado pelo diabo e ter práticas pagãs pelo seu relacionamento com o carvalho. Thomas é duro, frio, mas tem uma sensibilidade especial para se relacionar com os animais da quinta. Benjamim leva a vida sem limites, escolheu viver de forma irresponsável. Os irmãos são casados, têm mulheres e filhos e Rama, mulher de Thomas, surge como figura feminina forte, sendo a conversa que tem com Elizabeth ao descrever-lhe Joseph, reveladora da centralidade de Joseph na família, que ela cosidera estar mais perto dos deuses do que dos humanos.

“Ignoro se há homens nascidos fora da Humanidade, ou se alguns deles são tão humanos que fazem os outros parecer irreais. Talvez uma divindade venha viver para a Terra, de vez em quando. O Joseph possui força sob uma visão confusa, tem a calma das montanhas e as suas emoções são tão selvagens, ferozes e vivas como os relâmpagos, e tão destituídas de racionalidade quanto eu me possa ter apercebido. Quando estiveres longe dele, tenta pensar nele e verás o que quero dizer com isto. A sua figura crescerá até se tornar enorme, até ser maior que as montanhas, e a sua força parecer-se-á com o irresistivel impulso do vento. O Benjy morreu. Não se consegue conceber o Joseph a morrer. Ele é eterno. O seu pai morreu e isso não foi bem morrer. (…) Garanto-te que esse homem não é um homem, a não ser que seja todos os homens. A força, a resistência, o longo e laborioso raciocínio de todos os homens, e também toda a alegria e sofrimento, anulando-se um ao outro e mantendo-se contudo presentes. Ele é tudo isso., um repositório de um pedacinho de cada alma humana e, mais que isso, um símbolo do espírito da Terra.”

A ameaça de uma possível seca, os receios da noiva de Joseph quando atravessa o desfiladeiro a caminho da casa no vale, a energia negativa que se sente na clareira rodeada por pinheiros, e o rochedo coberto de musgo verde são os sinais de alerta que pairam ao longo do romance. As lendas dos naturais da região, dos índios e dos mexicanos que há muito habitam a região têm uma aura de mistério, de superstição e fatalismo que não deixam de fazer prever algo de funesto e imprevisível que fará quebrar o aparente equilíbrio e estabilidade. A pujança da Natureza presente naquele vale e que se reflecte nas colheitas fartas, nos estábulos cheios de feno e nos animais domésticos que se reproduzem a bom ritmo, marca os ciclos da vida e das estações ao longo de anos, bafejados pela abundância vital da água. Até ao dia, quando se descobre que Burton havia matado o carvalho antes de partir e abandonar o vale, em que a desgraça vai cair no vale, nos animais, na família e em toda a região. A partir de então é o declínio e a morte. Falta a água e é o desespero. Joseph é a terra. Joseph é a Natureza. A morte é inevitável.

Um livro repleto de espiritualidade, onde a Natureza tem o papel central. Impressiona. Mexe com quem o lê.

16 de Dezembro de 2019

Almerinda Bento

 

 

Ler, ler, ler...

09.12.19, Almerinda

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Hoje limito-me a reproduzir um excelente artigo de opinião no Expresso deste fim de semana com o qual concordo em absoluto.

"Um povo que não lê ou lê pouco, lê mal, escreve mal, interpreta mal, pensa mal e é um povo que dificilmente questiona..."

 

Desaprender o óbvio

02.12.19, Almerinda

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"A «ideologia naturalista», explica Clément Rosset no seu L'anti-nature , passa pela aceitação de que existem princípios inegáveis, inquestionáveis e necessários que sustentam toda e qualquer interpretação do mundo dependente da ideia de «natureza». Os enunciados sobre as mulheres encontram, por isso, um «ponto de apoio» que exclui por definição a dúvida, pois convoca uma «natureza feminina»: as opiniões sobre as mulheres são tão mais imunes à contestação quanto mais apelam para a presença implícita de uma «essência», negativa ou positiva. Vendo-as como sendo naturalmente «inocentes» ou «corruptoras», «angelicais» ou «diabólicas»., «lúbricas» ou «castas», entre tantos outros pares de conceitos opostos , o que sempre se supõe de todas estas vezes é a existência de um «eterno feminino». As mulheres individuais seriam apenas declinações contingentes desta instância transcendente."

in «Fêmea uma história ilustrada das mulheres» de Inês Brasão e Ana Biscaia, 2019