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Lendo e escrevendo

Lendo e escrevendo

Las Mariposas

23.11.19, Almerinda

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Em 1999, quando li “No Tempo das Borboletas” de Julia Alvarez (Bertrand Editora) estava longe de saber que a história das irmãs Mirabal mortas a 25 de Novembro de 1960 estava na origem do dia que assinala aquilo que é a segunda causa de morte em todo o mundo. Pátria, Minerva e Maria Teresa Mirabal assim se chamavam as três jovens activistas dominicanas na luta contra a ditadura de Trujillo. Os seus corpos foram encontrados junto ao seu jipe no fundo de uma escarpa de 45 metro...s de altura na costa norte da República Dominicana, em resultado de um atentado a mando da ditadura, mas oficialmente, a imprensa afecta ao regime noticiou o facto como um acidente.
As irmãs Mirabal eram conhecidas como Las Mariposas – as Borboletas – e mesmo apesar da falsidade que envolveu a sua morte, elas e a sua luta não foram esquecidas e em 1981, durante o I Encontro Feminista da América Latina e do Caribe, realizado em Bogotá, na Colômbia, o dia 25 de novembro foi designado como Dia Internacional da Não Violência contra a Mulher, em homenagem a elas.
Em Março de 1999 a ONU reconheceu a data que passou a ser comemorada em todo o mundo como Dia Internacional para a Eliminação da Violência contra as Mulheres.

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Um Muro no Meio do Caminho, Julieta Monginho

19.11.19, Almerinda

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Um Muro no Meio do Caminho, Julieta Monginho, 2017

Um livro extraordinário.O primeiro que li de Julieta Monginho e que recebeu por unanimidade o prémio Fernando Namora. Já antes, em 2008, recebera o Grande Prémio de Romance e Novela da APE por outro livro, sendo significativa a sua produção literária. Depois de ter lido “Um Muro no Meio do Caminho” só posso dizer que tenho andado distraída, pois Julieta Monginho é uma escritora que merece ser conhecida e divulgada.

No Verão de 2016 aportou a uma ilha grega, não como turista, mas como voluntária num campo de refugiados. Este livro para o qual alerta os leitores que se trata de ficção (será mesmo?) traz-nos uma série de personagens cujas vidas estão suspensas numa “ilha que é uma prisão disfarçada de paraíso”. No meio do pó ou da lama, do calor asfixiante ou do frio inclemente que fustiga as tendas e os contentores onde se amontoam, dos ratos ou dos escorpiões, os refugiados são sobreviventes que ousaram fugir do inferno da guerra em Alepo, ou no Afeganistão e continuam a sonhar com uma Europa que os olha de lado, que os cerca de arame farpado, onde a roupa a secar é o sinal da dignidade daqueles seres humanos que estão ali para lembrar ao mundo o direito de asilo que lhes assiste por direito e a Declaração Universal dos Direitos Humanos que orgulhosamente a Europa assinala a cada 10 de Dezembro e que está na génese daquilo a que se convencionou chamar construção europeia.

As personagens que nos traz são a paleta do mundo que se encontra confinado num espaço exíguo que sendo Europa é como se não fosse e que aguardam o salvo-conduto até Atenas para daí seguirem para poderem concretizar os seus sonhos: jovens mulheres de hijab, rapazes rebeldes ou sonhadores (lunáticos?), mulheres sem chão porque perderam tudo, crianças não acompanhadas “sem casa nem futuro”, crianças abusadas, intérpretes, cineastas, voluntários incansáveis também eles “náufragos de idênticas perdas…”. São pessoas de carne e osso, escrevem e desenham em cadernos, trouxeram um telemóvel e um computador protegidos dentro dum saco de plástico, guardam a t-shirt que o filho vestia quando foi abatido, gostam de dançar e de fazer filmes, apaixonam-se. Revoltam-se, inventam esquemas para fugir, fintam a burocracia, desesperam. Quem é refugiado? Quem procura auxílio? Quem é livre?

Claramente identificada com valores de solidariedade e igualdade entre as pessoas e com especial atenção e sensibilidade para as barreiras que se erguem à emancipação e liberdade das mulheres, Julieta Monginho questiona os estereótipos, quer levar para aquela ilha e para aquelas raparigas e mulheres no Athena Centre for Women toda a bagagem teórica que trouxe de Portugal, mas coloca-se numa posição humilde, de questionamento e de profundo respeito por aquelas pessoas. “O que é que faço aqui se não lhes valho?” “… mas pouco podia fazer para ajudar.” ”Em que fresta da sua identidade entrava o meu paleio ocidental?” Afinal o testemunho escrito contido neste livro, com personagens e situações ficcionadas ou não, é por ventura o apoio que perdurará no tempo para a causa dos refugiados. Enquanto leitores/as não esqueceremos o apelo de Ashmahn, a jovem grávida, quando se despede da ilha ao encontro do marido na Alemanha “Vê e não esqueças. Vê e dá notícia.”

Este livro é uma denúncia. Um testemunho comovente. É o pulsar do real, dos nossos dias, das nossas vidas, do nosso mundo. Um abanar do acomodamento, da distância, daquilo que está longe e não me diz respeito, da insensibilidade. “O mundo já não se choca com nada.”  Valha-nos a literatura para derrubar os muros que estão no meio do caminho.

18 de Novembro de 2019

 

Um Muro no Meio do Caminho (IV)

14.11.19, Almerinda

“Estava ainda nas nuvens com as aulas particulares de inglês, ou melhor, com o seu aluno especialista em flores. Tinha pesquisado a flora síria e estendido o vocabulário às plantas de jardim e às silvestres. Quando pensou que já era tempo de lhe ensinar coisas úteis foi ele quem se pôs a divagar. Queria saber palavras como «noite», «surpresa», «memória», «versos», «sonho»; verbos como «regressar», «entender», «imaginar», «esquecer». «Amar». E Ann ensinou-lhe todas as conjugações, incluindo a primeira pessoa do singular e a primeira pessoa do plural, incluindo o presente e o futuro.”

in "Um Muro no Meio do Caminho" de Julieta Monginho

Paddy, Sara, Muro, Desigualdade Salarial, Lula, Vox

12.11.19, Almerinda

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Paddy, Sara, Muro, Desigualdade Salarial, Lula, Vox…

Numa semana, estes nomes ou estes títulos encheram as páginas dos nossos jornais, foram motivo para peças nos telejornais, deram horas de debate nas redes sociais. Como sempre, a intensidade da notícia é alta, a reflexão frequentemente escassa e a avidez de novidades exige que se passe à notícia seguinte, porque o presente é que conta e se der boas audiências, tanto melhor.

Mas importa parar, reflectir e concluir que os acontecimentos não surgem e passam sem deixar marcas e algumas bem fortes para o futuro.

Paddy e o glamour do mundo digital. Muito empreendedorismo, muita tecnologia, muitos convidados topo de gama, numa cidade preparada para a enchente. Tudo brilha, muito neon como convém, mas no melhor pano cai a nódoa: o que seria da web summit sem 2700 voluntários a trabalhar sem ganhar e sem direitos?

Sara. Há Saras e Saras. Esta é jovem, sem-abrigo, negra e foi crucificada na praça pública porque abandonou o seu filho recém-nascido junto a um contentor. O que será feito do pai da criança? O que será a cabeça desta jovem mãe que deita o seu filho no lixo? Felizmente o bebé sobreviveu, possivelmente encontrará uma família que o vai acolher e amar. O presidente foi deitar um olho para dentro do contentor, possivelmente fez uma selfie. Vamo-nos esquecer da Sara?

Muro. 30 anos depois. Deitou-se aquele abaixo, outros ficaram e mais outros estão a ser construídos: na Palestina, no Sahara Ocidental, na fronteira do México, na Europa… A Europa fortaleza  que ficou mais muralhada contra os refugiados, os que fogem da guerra, olhados como terroristas. Contra os refugiados que não se afogaram no Mediterrâneo.

Desigualdade salarial. A partir de 8 de Novembro, tendo em conta a desigualdade entre os salários dos homens e das mulheres, é como se as mulheres trabalhassem à borla até ao final do ano. Como os/as voluntários da web summit. A velha consigna “para trabalho igual, salário igual” não passa de uma consigna. A desigualdade de género não é uma falácia.

Lula livre!  gritou-se na sexta-feira. A esperança na mobilização dos muitos cidadãos brasileiros na reposição da verdade e na luta contra um presidente corrupto, ignorante, reaccionário, incapaz. O Brasil merece respeito, democracia, liberdade.  Lembrando Chico Buarque “Canta a primavera, pá/Cá estou carente/Manda novamente/Algum cheirinho de alecrim”.

E finalmente, Vox. Não vale a pena ignorar que o Vox foi o grande vencedor da noite de domingo. Desgraçadamente. Mais de 3 mihões de espanhóis acharam que ali estava a solução para as suas vidas! Órban, Salvini, Erdogan, Marine le Pen, Bolsonaro, Trump, Ventura estão a esfregar as mãos de contentes. Nuvens negras no horizonte.

Concluo dizendo que há tanto motivo para lutar. Pela democracia, pela liberdade, pelos direitos para todos e todas. Tantos avanços, tantos recuos. Tanta certeza de que tudo já estava adquirido, mas a constatação de que os pequenos passos mesmo pequenos têm de ser acompanhados e não deixados sem guarda. Os sindicatos, os movimentos sociais, as forças e organizações de esquerda têm um papel insubstituível neste combate que não tem fim. Mãos à obra, que se está a fazer tarde.

(Este texto foi publicado a 12 de Novembro de 2019 no site do SPGL - Notícia do Dia)

Um Muro no Meio do Caminho (|||)

04.11.19, Almerinda

Shayma, a mulher que ficou só

 

"Todas as frases da sua história começam com um No.

No children, no husband, no parents. No food, no doctor, no answer.

Nada.

Pode alguém viver nessa palavra que nem o abismo consegue definir?

Pode a mulher que a ouve ficar ali, em frente dela, sem palavras,

no words,

sem chão,

no ground,

sem ar que se respire,

no breath?

Silêncio. Si-len-ce. A única palavra que lhe poderia ensinar. Não percebo se a compaixão me esvazia ou me enche de raiva. Uma indignação estéril, a pior."

in "Um Muro no Meio do Caminho" de Julieta Monginho

 

Um Muro no Meio do Caminho (II)

03.11.19, Almerinda

"Nesse momento tomou a decisão. A t-shirt que guardava com o seu bem mais precioso, a que o filho mais novo usava quando foi abatido, iria dá-la a Amina.

O sangue de Shiar escorreria das suas mãos quando a lavasse, o sangue e a água que tudo afoga e limpa, deixando a memória e, às vezes, o futuro. Escorreria, o sangue, para um chão à beira da Europa., misturado com o de guerras que o tempo e as histórias tornam nossas. A t-shirt  preta, com a palavra Today inscrita a letras brancas.

No dia de Outono em que se despediu de Asmahn - a primeira das duas a deixar a ilha - no porto de embarque, Amina, na sua versão rapazinho, usava a t-shirt , proclamando a palavra Today pelas ruas da cidade, do porto até ao parque, sem que ninguém se aproximasse ou lhe fizesse perguntas a que não pudesse responder."

in "Um Muro no Meio do Caminho" de Julieta Monginho

Um Muro no Meio do Caminho (I)

02.11.19, Almerinda

Amina, a rapariga que desenhava sonhos

"Quando um dia se fizer a história deste momento vergonhoso da atitude europeia e da ascensão xenófoba, do acervo fotográfico emergirão as fotografias que retratam estes móveis aleijados que um benemérito considerou à medida de quem não pertence ao mundo dos desejos, mas ao mundo das sobras, ao que restou da devastação. O mundo dos desejos está reservado aos que moram no continente de marca, tanto mais altivo quanto mais se afasta da pobre costa sul. Aos que querem lá entrar exige-se que deixem à porta as ilusões e, se teimarem, ao menos que tomem o lugar de pessoal menor que lhes foi reservado à nascença. As poltronas escavacadas estão muito bem para eles, sentadinhos e à espera do lado de lá do muro onde está pendurado o letreiro Do not disturb!"

in "Um Muro no Meio do Caminho" de Julieta Monginho

 

Sangue do meu sangue, Michael Cunningham

01.11.19, Almerinda

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Sangue do meu Sangue, Michael Cunningham, 1995

A opinião de escritor admirável que tinha àcerca de Michael Cunningham quando, há já alguns anos, lera “As Horas”, foi reforçada com a leitura de “Sangue do meu Sangue”. A história começa em 1935, com Constantine, um rapaz grego que um dia partirá para os Estados Unidos para fugir da pobreza, movido pela quimera da terra das oportunidades. Aí namorará, irá casar e ter três filhos. A tensão entre o casal resulta não só das diferenças entre as culturas grega e americana, mas também das dificuldades financeiras iniciais e da forma como cada um lida com os filhos, desculpando ou não as birras, os caprichos e os sobressaltos do crescimento das crianças. A ascensão social da família, fruto do negócio de construção de casas baratas, vai acentuar a distância entre Constantine e a família, em vez de a diminuir. A inesquecível cena da fotografia de família para o cartão de Natal a enviar aos amigos não passa de uma capa que esconde a animosidade e a violência latente naquela família americana.

Com o crescer dos filhos – Susan, Billy e Zoe – cada um vai seguir o seu destino e os laços familiares vão-se tornar cada vez mais ténues e esporádicos. Casamentos, divórcios, relações fortuitas, escolher o fio da navalha, descobrir a sua identidade sexual, profunda insatisfação pessoal, o vírus da sida, o sentimento de fracasso, o viver de aparências, a fragilidade na doença, a decadência e a velhice, o reencontro e a aproximação, o amor, a solidariedade, o apaziguamento, o preconceito, a dificuldade em aceitar a diferença, a homofobia, os traumas recalcados, tudo isto vai surgindo, ao mesmo tempo em que vamos acompanhando as diversas personagens à medida que os anos passam. Até 1995 seguimos o que cada um faz, decide, sente, escolhe, sendo nesse ano que a instável “paz” e “harmonia” da família Stassos é definitivamente estilhaçada. A partir daí e até 2035, ou seja, cem anos depois da cena inicial em que o menino Constantine sonha conseguir arrancar o primeiro pimento, a primeira beringela e o primeiro tomate da sua pobre horta na Grécia natal, a narrativa correrá veloz. É o ciclo da vida e da morte. Na última cena, em 2035, Jamal quer estar sozinho quando deitar as cinzas dos pais – Will e Harry – na baía.

Admirável a forma como Michael Cunningham disseca as contradições e os sentimentos das pessoas, os seus sonhos e frustrações, as classes sociais e o estatuto que as mesmas conferem aos indivíduos, a falsidade do sonho americano, os negócios fraudulentos que geram milionários de um dia para o outro, a homossexualidade e a homofobia, a solidariedade e também as preocupações de ordem ambiental.

Sem dúvida um dos grandes livros que li este ano e que recomendo.

1 de Novembro de 2019