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Lendo e escrevendo

Lendo e escrevendo

A Noite Passada

20.09.19, Almerinda

A Noite Passada.jpg

A Noite Passada, Alice Brito, 2018

A escrita de Alice Brito é única, inimitável, brota com uma autenticidade e naturalidade que nos transporta para os anteriores livros da sua autoria. Alice Brito domina o uso de um vocabulário rico, certeiro, onde o vernáculo não é poupado. De novo a cidade de Setúbal, o recurso aos objectos do dia-a-dia, os ambientes sonoros e visuais dos quotidianos cinzentos do salazarismo embalados e adocicados pelos folhetins. Personagens inesquecíveis. Mulheres subjugadas, submissas, que ainda não são sujeito, mas também mulheres fortes e que crescem quando descobrem a força que têm em si. O sexo que ou é virtude ou é “javardice”. As palavras que ainda não foram descobertas como “sexualidade”. Tanto, mas tanto que aqui podia referir.

Alice Brito faz-nos entrar no universo português dos anos 50, 60 e 70 em dois registos: através do romance propriamente dito e através dos comentários de Luís, Luísa e da filha Mafalda que por vezes medeia as conversas dos pais como se fosse um pombo-correio e, que à medida que a leitura avança, os questiona tentando perceber que papel eles tiveram ou não como protagonistas principais do livro que estão a ler e que estão a partilhar connosco, leitores.

A riqueza do relato das vidas das personagens e dos episódios que se sucedem advém do recurso a detalhes da época que pessoas mais velhas recordarão e que ajudam os mais novos a visualizar o que era então aquele Portugal fechado, atávico e amordaçado. Como comenta Gil, amigo de Luís e Luísa que os acompanha na leitura em primeira mão do romance, “As pequeníssimas minudências do dia-a-dia são os pormenores que dão vida ao quadro, que estão lá atrás, que dão perspectiva. Que ninguém diga que não interessam porque elas são o miolo da História. Sem elas nada fará sentido. Os grandes acontecimentos só são importantes quando se repercutem na vida dos povos. (…) A História não depende só de assinaturas de tratados notáveis. De batalhas heróicas ou consulados divinos. A História faz-se também de pequeníssimos factos por que a gente comum passou. Do dia-a-dia comezinho e sem glória.” Exemplos são muitos: a visita a Portugal da Rainha Isabel de Inglaterra, a morte de Cármen Miranda, os feitos do grande velocista Zatopek nos Jogos Olímpicos de Helsínquia, os folhetins radiofónicos seguidos religiosamente nas casas portuguesas, a chegada da televisão a preto e branco que se via no café, a campanha de Humberto Delgado e a repressão, a PIDE e a tortura. As mudanças sociais da década de 60 – os costumes, a música, a juventude – ao mesmo tempo que começa a guerra colonial que se vai arrastar até 74 e os episódios mediáticos e corajosos de resistência como foi o caso do Santa Maria ou o golpe de Beja. Num país onde as centenas de mortos das grandes inundações de 67 foram objecto de censura, onde a morte saiu à rua e ceifou José Dias Coelho ou Ribeiro dos Santos, programas como o Zip Zip eram o sinal de que a mudança estava a chegar. E ao mesmo tempo em que estes acontecimentos vão surgindo na narrativa, vamos conhecendo as personagens, as suas personalidades, as escolhas que fazem, as suas dúvidas e receios: Amélia, Joaquim, António, Elisabete, Bárbara, Lídia, o Rui Corninho e por fim o pide Amadeu Silveira (vulgo Português Martelão, no Brasil).

 

“Maravilha Maravilha

Venham ver o barco doido

Sem amarras que o segurem

Pela porta entra a maré

Venham ver o barco doido

Água cai pela chaminé.”

 

É com este poema de José Afonso que começa a segunda parte do romance. O cinzentismo salazarista e marcelista é substituído pelo alvoroço e alegria do 25 de Abril. A cidade de Setúbal vai vivê-lo intensamente. Os partidos existentes e os que se formam, as associações culturais, os cidadãos que se organizam, que lutam, que aspiram a uma vida decente, a política que se aprende dum dia para o outro, as discussões intensas, os vira-casacas, toda essa memória histórica nos é avivada.

Em “A Noite Passada” Alice Brito traz-nos a sua visão desse período particular vivido pela cidade de Setúbal e sente-se que ela também está lá neste seu terceiro romance de amor à liberdade, a Setúbal e de ódio visceral ao fascismo.

 

19 de Setembro de 2019

Almerinda Bento

 

 

Porque somos mais nómadas que sedentários

09.09.19, Almerinda

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Foram quase dois anos a viajar, no meu caso. E hoje a nossa viagem fez uma paragem e despediu-se num até breve, até já, até sempre de uma das nossas companheiras de viagem. Aquela que nos interpelava, que nos lançava novos desafios, que ia na carruagem da frente e que decidiu seguir o seu caminho, sair dum trilho que já não a satisfazia e que se lançou numa outra direcção, menos confortável mas mais desafiante.

"Os livros são de facto uma viagem", disse ela. E fomos buscar as nossas memórias, os nossos primeiros livros, alguns que nos fizeram crescer e que fizeram de nós aquilo que somos. Alguns que sublinhámos - os lápis são tão preciosos - outros a que acrescentámos as nossas notas e anotações, outros a que voltamos sempre ou de vez em quando e em que nos revemos.

Cada uma de nós entrou em paragens diferentes. Quando eu cheguei com o Ishiguro, pela mão da Teresa, já outras tinham entrado antes com a Ferrante ou a Sophia. Repeti Sandor Marai, aprofundei João Pinto Coelho, descobri Stefan Zweig que conhecia só de nome, rumei ao Farol com Virginia Woolf, deslumbrei-me com Maria Teresa Horta e as suas Luzes de Leonor, entrei nas Três Vidas de João Tordo, contorci-me com Kafka, desconstruí o Natal e os Reis Magos com Michel Tournier, apaixonei-me por Selma Lagerlöf pela mão de Cristina Carvalho, aprendi muito com Chimamanda Ngozie Adichie, uma inspiração, descobri a força da escrita de Grazia Deledda, a segunda mulher a receber o Nobel da Literautura, revisitei e de novo me deslumbrei com a contensão dorida de Maria Judite de Carvalho, aprendi a ler correctamente o nome de Olga Tokarczuk mas, sobretudo, fiquei rendida às suas Viagens, tal como amei Manuel Vilas e nunca mais esquecerei a viagem de comboio que fiz durante cinco semanas com Paul Theroux, numa viagem imensa que nunca tinha pensado fazer.

Mas o melhor de tudo é que todas estas viagens eu não teria feito se as tivesse pensado sozinha. Se não as tivesse compartilhado com estas minhas companheiras de viagens que, por seu lado, viajando comigo, olharam para as "paisagens" com outros olhos, outras perspectivas. Os seus olhos. As suas perspectivas.

E foi isto que fez das nossas viagens, viagens ricas, estimulantes, diversas, únicas e extremamente enriquecedoras.

A despedida tem sempre um aperto na garganta. Mas já temos alguém que não vai deixar o barco/comboio à deriva. Bem vinda.

Regresso a uma citação de Rubem Alves que muito gosto e que tem tudo a ver com esta nossa viagem e com a partida.

"Amar é ter um pássaro pousado no dedo.

Quem tem um pássaro pousado no dedo sabe que, a qualquer momento, ele pode voar. "