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Lendo e escrevendo

Lendo e escrevendo

As Sombras de Leonardo da Vinci

30.08.19, Almerinda

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As Sombras de Leonardo Da Vinci, Christian Gálvez, 2014

 

Não é fácil escrever sobre este livro. Identificado como “romance histórico” “fruto de vários anos de investigação exaustiva sobre a vida de Leonardo da Vinci”, não consegui abstrair-me de um certo preconceito relacionado com jornalistas que se tornaram verdadeiras estrelas pop depois de terem começado a escrever livros apoiados em grandes campanhas de marketing que fazem com que os seus livros passem a figurar durante semanas nas montras das livrarias e no top de vendas! Talvez seja mesmo só preconceito. Sobre o autor, Christian Gálvez, na badana do livro pode-se ler que “Desde 2009, divide-se entre o trabalho em televisão e a investigação sobre Leonardo da Vinci, vivendo entre Madrid e a Toscana. É um dos mais conhecidos especialistas internacionais do artista.” Também na capa, o leitor é alertado para o conteúdo do livro que vai fazer sobressair a faceta do homem, mais do que a do génio.

Quem não sabe que Leonardo da Vinci foi genial? Que imaginou máquinas e inventou engenhos que só vários séculos depois da sua morte foram realizados? Que as suas pinturas são obras de arte que atraem milhões de visitantes de todo o mundo? Que utilizou técnicas pioneiras e que, embora tendo vivido num período de grande incentivo e apoio às artes, se distinguiu de todos os seus pares por ser o maior? A sua genialidade foi objecto de estudo de especialistas e de produção de milhares de obras sobre a sua arte e dimensão multidisciplinar.

Mas a sua figura como pessoa e a interpretação de algumas das suas obras têm sido objecto de imensas teorias e controvérsia. Daí, ter sentido a necessidade de, ao ler “As Sombras de Leonardo da Vinci” de Christian Gálvez, confrontar informação com outros livros sobre Leonardo da Vinci. Reconheço que a parte material e visível da obra é bem mais fácil de ser trabalhada do que a personalidade, os sentimentos e atitudes de um homem que viveu 67 anos e cuja vida foi marcada por traições, desafios e vicissitudes, mas uma energia fora do vulgar que fez dele também um sobrevivente.

O início do livro situa-se em 1519 no dia 2 de Maio, data da sua morte, em França, na região do Loire onde viveu os últimos três anos da sua vida, a convite do rei de França, Francisco I. É a cena da morte, onde está acompanhado do rei e das pessoas que lhe são mais queridas, cena essa a que voltaremos no final do livro. Nascido da relação ocasional do pai, um importante notário de Florença, com Caterina uma jovem escrava, esse nascimento não desejado pelo pai marca-o, ao contrário do amor que a mãe lhe devota, mesmo quando o acompanhamento do seu crescimento e educação lhe são impedidos e o afastamento do filho lhe é imposto.

Os diversos capítulos que constituem o livro e que não surgem por ordem cronológica são cenas da vida de Leonardo da Vinci, em criança, na oficina do mestre Andrea Verrocchio, nos calabouços do Palazzo del Podestá em Florença, na sequência duma acusação anónima de homossexualidade, na sua oficina, em Florença, na Abadia de Montserrat, em Milão, Roma ou em França. A desenhar, a projectar, a planear, a dissecar cadáveres, a inventar, a experimentar, a estudar, a “voar”.

As rivalidades entre as oficinas dos artistas, a Europa em mudança, a Península Itálica dividida, as guerras entre os Médici, a Igreja e os papas, o nepotismo reinante, as teorias e os protagonistas que queriam reformar a Igreja de Roma, os encontros e desencontros, amizades e inimizades com outros artistas da época (Sandro Botticcelii, Michelangelo, Rafael, Maquiavel) tudo isto nos dá este livro do escritor madrileno. Um romance histórico documentado no final do livro com uma listagem exaustiva das personagens do romance, dos papas, dos Médici e dos Sforza que reinaram em Roma, Florença e Milão durante o período de vida de Leonardo da Vinci, assim como os reis de Espanha e de França do mesmo período.

Se Leonardo da Vinci conseguiu salvar Lorenzo de Médici do atentado dos Pazzi, lançando-se da cúpula de Santa Maria del Fiore para a Piazza della Signoria e assim usando pela primeira vez a sua máquina voadora; se Leonardo da Vinci conseguiu escapar da fogueira de Girolamo Savonarola lançando-se ao rio Arno e usando o seu escafandro que o impediu de morrer afogado; se Leonardo da Vinci se vingou dos três torcionários que o torturaram quando ele esteve preso acusado de práticas homossexuais; se Leonardo da Vinci viveu em Barcelona (Abadia de Montserrat) antes de ir para Milão; se a explicação que Francesco Melzi deu ao rei de França sobre o quadro de Mona Lisa corresponde ao pensamento e intenção de Leonardo da Vinci ao pintá-lo é a verdadeira…

Tantos “ses”! As minhas dúvidas.

A minha certeza: Leonardo da Vinci foi um homem genial, o símbolo maior do Renascimento, alguém com uma capacidade muito superior ao comum dos mortais, sempre a querer superar-se.

“O difícil consegue-se, o impossível tenta-se.”

 

29 Agosto, 2019

Almerinda Bento

 

 

 

Isabel Menina Mulher

24.08.19, Almerinda

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Em 2013 estive cerca de um mês no Gilé, Zambézia, Moçambique.
Uma experiência difícil de esquecer. Mulheres guerreiras, trabalhadoras infatigáveis, sofredoras, marcadas pela sua condição de mulheres para serem o sustentáculo da família e da sociedade. Precocemente envelhecidas por gravidezes sucessivas, com jornadas de trabalho imensas e rotineiras marcadas pela tarefa inadiável de ir buscar água ao poço mais próximo... aguardar horas na fila para poder encher o bidon de 20 litros, regressar a casa, voltar à machamba, sujeitas à desconfiança do marido por terem estado tantas horas fora de casa... Já sem contar com a doença, a malária, a má nutrição, a pobreza e mesmo assim, um sorriso nos lábios.

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Aquela é outra dimensão das vidas das mulheres, que muitas de nós, europeias, desconhecemos.
Quando se vem de África, e neste caso duma zona aparentemente esquecida pelos governantes - o Gilé fica a 220 kms de Nampula, dos quais 99 em terra batida e a viagem demora cerca de seis horas - vem-se diferente e olha-se para o mundo doutra maneira: relativiza-se, põe-se tudo em perspectiva.
 

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Conheci mulheres e habitantes de toda a região do distrito do Gilé. A intenção tornar mais fácil a vida daquelas mulheres... Ouvi-as, percebi os seus anseios, admirei-me com a resiliência, senti-me pequenina. Hoje, sinto o desconforto de não se ter tornado o sonho, o direito ao sonho, realidade. Quero acreditar, até para meu conforto (!) que as condições de vida daquelas mulheres tenham melhorado e que tenham sido construídos poços mais próximo das suas casas. Que tenham sido feitas campanhas de educação sexual e que a gravidez precoce seja cada vez menor. Que as escolas e os seus professores, que encontrei paupérrimas e totalmente desapoiados, estejam nas prioridades do governo. Que a doença e a malária tenham diminuído. Que as vias de acesso e a mobilidade sejam uma realidade. Que a Paz seja construída como motor do desenvolvimento do país.
Hoje, a minha afilhada Isabel faz 22 anos. Era uma entre muitas das meninas que conheci na Missão das Irmãs de S. João Baptista e de Maria Rainha. Era do Alto Molocué, tinha 15 anos e andava na 9ª classe. Mas foi o nome dela - Isabel - que fez com que a escolhesse para ser minha afilhada.  Para aquelas meninas o viverem na missão era a forma de poderem estudar e escapar a um destino marcado pelo analfabetismo, por uma gravidez precoce e pela doença. O pouquíssimo que podia fazer para a ajudar nos estudos foi tão só o que lhe permitia continuar ou não a estudar! O mundo é tão desigual, tão assustadoramente, escandalosamente desigual!
Recordo estas meninas e pergunto-me: O que será feito delas? Quantas já terão deixado de estudar? Quantas já serão mães?
Quando parti do Gilé e depois voltei a casa, passando por Nampula e Maputo trouxe comigo aquele incrível Monte Gilé, as pessoas no coração e algumas palavras a martelarem-me na cabeça:
Água. Direitos. Desenvolvimento. Autonomia. Democracia. Poder.
Parabéns Isabel, Menina, Mulher Moçambicana.
 

O Ano da Morte de Ricardo Reis, José Saramago

14.08.19, Almerinda

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Recordando um maravilhoso livro que li nas férias de Verão, há 3 anos.

“O Ano da Morte de Ricardo Reis”, José Saramago, 1984
Uma das minhas leituras de férias e mais um dos livros de José Saramago já há algum tempo à espera de chegar a sua vez. Como sempre, fascinante, denso, com incursões inesperadas a propósito de tudo e de nada, desde expressões da nossa linguagem do dia-a-dia, até deambulações sobre a vida, a morte, o ser, o existir, o sonho… sobretudo nos encontros de Ricardo Reis com Fernando Pessoa. Surpreendente, para ser lido com calma, saboreando os caminhos que Saramago nos convida a seguir ao longo das páginas deste romance.
Em finais de Dezembro de 1935, Ricardo Reis chega de barco a Lisboa, vindo do Brasil onde esteve dezasseis anos a viver. É o reencontro com a sua cidade, ficando alojado no Hotel Bragança na Rua do Alecrim, não sabendo ainda por quanto tempo lá vai ficar. Sem planos definidos, Ricardo Reis é uma personagem solitária que vai observando e apreendendo a realidade da cidade, do país e do mundo, sem se envolver directamente, antes colocando-se de fora.
No entanto, o cemitério dos Prazeres onde está sepultado Fernando Pessoa falecido em 30 de Novembro de 1935, é o primeiro local que Ricardo Reis visita mal chega a Lisboa. No primeiro dia do ano de 1936, quando a euforia do novo ano é vivida lá fora e Ricardo Reis já se recolheu ao seu quarto no hotel Bragança, Fernando Pessoa (ou o seu fantasma) visita-o pela primeira vez e avisa-o de que só poderão ter mais oito meses para se encontrarem e explica que tal como quando estamos no ventre das nossas mães não somos ainda vistos, mas todos os dias elas pensam em nós, após a morte cada dia vamos sendo esquecidos um pouco “salvo casos excepcionais nove meses é quando basta para o total olvido”.
O “Senhor Doutor Reis” como é tratado pelos empregados e hóspedes do hotel é um homem solitário, embora goste de almoçar em pequenos restaurantes pedindo ao empregado que não levante o prato à sua frente e deixe cheios o seu copo e o do seu companheiro imaginário. Gosta de observar e imaginar histórias sobre alguns hóspedes que jantam e frequentam o hotel e cria uma familiaridade por vezes forçada com o gerente – Salvador – com Pimenta que lhe carrega as malas e com Lídia a empregada que lhe limpa o quarto e lhe leva o pequeno almoço. Por outro lado, sendo alguém que se instala durante algum tempo no hotel sem ocupação nem ligações familiares ou sociais conhecidas, é observado não só pelo gerente e pelo empregado do hotel, mas também pela polícia política que quer saber as motivações daquele estranho doutor Ricardo Reis que regressou a Portugal vindo do Brasil. As notícias que lê todos os dias nos jornais para se pôr a par do que se passa no mundo e em Portugal pintam um retrato idílico de um país em que o salazarismo começa a fazer o seu caminho. O país da ideologia da família unida e feliz, em paz, em confronto com as convulsões que se vivem na vizinha Espanha e no Brasil. O país da sopa dos pobres e das obras de caridade em todas as paróquias e freguesias. O país onde se morre de doença e de falta de trabalho. O país dos milagres de Fátima e da devoção ao chefe, arregimentando os seus seguidores na Mocidade Portuguesa, na Legião e em outros instrumentos de propaganda como a Obra das Mães pela Educação Nacional. O país dos filhos de pais incógnitos. O país da discricionaridade e da devassa da vida privada, dos interrogatórios e da intimidação sem quaisquer motivos, o início da triste história da PVDE/PIDE. No fim do interrogatório à saída da António Maria Cardoso, Ricardo Reis sentiu um fedor a cebola que exalava Victor, o informador. Mas também noutros momentos esse fedor rondava por perto.
Lisboa, a cidade de Pessoa, a cidade onde Ricardo Reis veio para morrer, é uma cidade cinzenta e triste em que a chuva cai impiedosa. O Carnaval também é molhado e sem graça. No Verão, o calor é sufocante. A condizer com o ambiente de suspeição e desconfiança do Estado Novo, a cidade é mesquinha, coscuvilheira, intromete-se na vida dos outros. Seja primeiro no hotel Bragança, ou mais tarde quando Ricardo Reis aluga um andar na Rua de Santa Catarina, as vizinhas espreitam, conjecturam, mexericam, imiscuem-se. Até para os dois velhos que se sentam junto à estátua do Adamastor, aquele novo morador de Santa Catarina não deixa de ser um motivo de interesse para matar as horas de ócio e de conversa. Felizmente para Ricardo Reis, daquele segundo andar há uma vista deslumbrante para o Tejo.
Em Espanha, depois da vitória das esquerdas nas eleições é para Lisboa que fogem e se refugiam os detentores de riquezas, aguardando a reviravolta que não tardará com o golpe fascista liderado por Franco. Na Alemanha e na Itália, os ditadores lançam os seus instrumentos de propaganda e preparam os seus seguidores para um dos períodos mais negros da história da humanidade. No Brasil o comunista Luís Carlos Prestes é preso. As notícias dos jornais portugueses dão conta de que no estrangeiro Portugal é visto como o país que finalmente vive um período de paz e prosperidade.
E agora, as duas personagens femininas que se relacionam com Ricardo Reis. Lídia – a musa das Odes de Ricardo Reis – e Marcenda são duas personagens centrais nesta obra e neste período da vida de Ricardo Reis. Como é apanágio de Saramago, as suas heroínas são sempre mulheres fortes e decididas. Lídia, empregada no hotel onde Ricardo Reis vai viver os primeiros tempos após a sua chegada a Lisboa, é senhora de si, apaixona-se pelo doutor Ricardo Reis mesmo sabendo das diferenças sociais que a impedem de poder ter uma vida social sem ambiguidades com aquele com quem se relaciona sexualmente. Marcenda, a jovem hóspede do hotel que todos os meses vem com o pai para uma consulta médica, encontra em Ricardo Reis uma pessoa mais velha que a trata como uma adulta e não como uma criança a quem se escondem verdades dolorosas.
Muito mais haveria a dizer sobre este denso romance de José Saramago, repleto de referências poéticas a Camões, à “Mensagem” de Fernando Pessoa e aos seus muitos heterónimos, entre outros. Não sendo especialista na obra do poeta, limito-me aqui a fazer este breve apontamento sobre esta obra de Saramago que penso ser um manancial para os/as amantes da literatura e, sobretudo, para os/as estudiosos/as da poesia de Pessoa e dos seus diversos heterónimos.

Lendo, escrevendo, desenhando

11.08.19, Almerinda

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Motivos para desenhar não faltam, mas nem sempre a coragem para me lançar ao desafio que é aplicar as técnicas que as minhas professoras me ensinaram. Elas bem falam nos diários gráficos e eu bem sei que só com prática, muita prática se consegue melhorar. É da vida!

Este foi a tentativa de registar a imagem de algumas maçãs, um limão, uma banana e um maracujá dentro duma fruteira maravilhosa que era da minha avó e que já deve ter mais de 100 anos. Usei o pastel seco e o lápis aguarela em papel para pastel A4 com textura.

 

 

 

Pão de Açúcar, Afonso Reis Cabral

11.08.19, Almerinda

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Pão de Açúcar, Afonso Reis Cabral, 2018

 

Afonso Reis Cabral já me surpreendera aquando do seu primeiro livro “O Meu Irmão”, pela forma séria como tratou a realidade das pessoas com síndrome de Down e os desafios que se colocam às famílias na sua forma de se relacionarem com essa realidade no que respeita aos direitos e necessidades das pessoas que são diferentes.

Em “Pão de Açúcar” Afonso Reis Cabral agarra um acontecimento ocorrido no Porto em 2006 – o assassinato de Gisberta – e transforma-o numa obra de ficção. Na nota prévia, o autor apresenta-nos um rapaz que trabalha numa oficina de bate-chapas, mas que tem o sonho de um dia ser marceneiro – o Rafael Tiago – que o abordou numa sessão de “escritor-caixeiro-viajante”, lhe entregou uma pasta cheia de documentos e lhe pediu que fizesse um romance com aquilo. “Ele esperava que a minha escrita realçasse a beleza, o tal chorar de ternura e não ligar ao que dizem.” Seguiu-se todo o trabalho de organizar aqueles papéis, o trabalho de campo e investigação dos factos e “depois baralhei com ficção, que é como se faz um romance.”

É ficção, mas ajuda-nos a compreender o incompreensível; a perceber os contextos; a desvendar as histórias de vida; a conhecer os percursos da Gi, do Rafa, do Samuel, do Nélson, do Fábio, do Grilo, do Leandro, da Alisa… Das vidas que não são cor-de-rosa nem a preto e branco. De como os estereótipos e os preconceitos nos condicionam e de como a sociedade os inculca em nós, condicionando-nos nas nossas atitudes e nos nossos actos. Em “Pão de Açucar” está lá tudo: o abandono, a segregação, a violência como norma, a miséria, “as famílias de merda”, a marginalidade, a fuga à escola, o andar ao deus dará armado em durão, a institucionalização, a sobrevivência.

No meio de tanto abandono e falta de carinho, para um rapaz que mal tem 12 anos, conseguir manter-se à tona poderá ser tornar-se dono de uma bicicleta sem préstimo que alguém deitou para o lixo e restaurá-la, ou roubar a chave do sótão do internato para desvendar os segredos lá escondidos, ou dizer por desenhos o que não se consegue dizer por palavras, ou servir-se da força física para exercer poder e estabelecer a hierarquia dentro do grupo, ou ter um esconderijo que seja só seu, mesmo que não passe de um lugar sujo. “Em 2006, havia muito que ninguém prestava atenção à ruína que fora um quarteirão do século XIX e que teria sido um hipermercado do Pão de Açúcar.”

E depois são as dores do crescimento, as contradições de quem tem de fazer pela vida, mas não tem chão onde pôr o pé. Quer-se ser amado, mas repudia-se um simples gesto de carinho.

Tem-se nojo, mas depois é-se atraído como por um ímã. Quer-se guardar segredo, mas depois tem que se mostrar que também se é dono de uma raridade.

Afonso Reis Cabral dá-nos isto com mestria, em imagens vivas, em vislumbres subentendidos, em cenas de poesia e beleza, carregadas do vernáculo e expressões do quotidiano de rapazes na adolescência. Numa fase em que se anda à deriva, em que os corpos estão a descobrir que uma tatuagem ou o tocar da pele podem queimar, a descoberta de um corpo esquisito agora muito fraco, mas que já foi poderoso e desejado, com uma história de luta e de afirmação, de resiliência e sobrevivência, como responder a tanto questionamento quando não há ninguém que nos ouça e que nos embale?

Vale a pena ler “Pão de Açúcar” não só para lembrar Gisberta, as Gisbertas, mas para perceber que a luta contra a transfobia e a homofobia não se compadece com vagos encolher de ombros ou assobios para o lado. Requer um processo de educação profundo, um respeitar as diferenças, as identidades, o humano na sua diversidade e beleza.

Termino, com algumas citações retiradas ao longo da leitura de “Pão de Açúcar” e esta notícia do “Observador” de 22 de Fevereiro de 2016: “Dez anos depois, o que é feito daqueles jovens? E da instituição? E do prédio abandonado onde Gisberta morreu? E da família da imigrante? Quem era, afinal, aquela mulher? E o que é que a sua morte deixou?”

 

(…)

 

“De certo modo estava-lhe agradecido. Até então, ninguém elogiara uma coisa minha, um trabalho destas mãos. Supus que as mães faziam igual: deixavam bilhetinhos por todo o sítio para os filhos lerem.”(pág. 59)

 

“… os contos da Gi eram como desenhos com palavras.”(pág. 105)

 

“Aquilo de querer que os outros vissem como ele, no fundo, é o que toda a gente quer: que os outros nos compreendam. Mas uns podem e outros não.” (pág. 180)

 

“Engraçado como aos doze anos até circunstâncias de merda permitem camaradagem.” (pág. 201)

 

Mouriscas, 9 de Agosto de 2019

Almerinda Bento

 

Londres, Virginia Woolf

03.08.19, Almerinda

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Londres, Virginia Woolf, 1931,32

Como é a Londres de Virginia Woolf? Quase cem anos depois, que diferenças se encontram entre a visão da escritora que nasceu, amou e viveu durante tantos anos nesta cidade e uma cidadã-turista que visita a cidade e que a dá a conhecer a outras pessoas que a visitam pela primeira vez?

Entre os inúmeros pontos de interesse da cidade tão presente nos seus Diários, Virginia Woolf escolhe como “roteiro” neste The London Scene seis aspectos, correspondentes a seis ensaios escritos na Primavera de 1931 e publicados em Dezembro desse mesmo ano e ao longo de 1932 na revista Good Housekeeping.

Começa pelas docas, pela azáfama do porto, com as entradas constantes de navios vindos da Índia, da Austrália, da América, de todo o mundo, trazendo e levando produtos ao sabor das necessidades e do gosto das populações. A dança dos guindastes é constante e a sujidade e o lixo não são coisas boas de se ver, em contraste com Oxford Street onde se encontram “refinado(s) e transformado(s)” os produtos trazidos e deixados em bruto nas docas de Londres.  Mas Virginia Woolf alerta que Oxford Street “não é a rua mais distinta de Londres”, tanto mais que aqui “há demasiadas pechinchas, demasiados saldos” para concluir que “Tendo em conta tudo isto – os leilões, os carrinhos de mão, as pechinchas, o esplendor – não se pode dizer que seja refinado o carácter de Oxford Street.” Nesta maré que é Oxford Street tudo é transitório como os nossos desejos, veloz como as notícias, reflectindo que “o encanto da moderna Londres está em ser feita não para durar, mas para passar.”

Depois da “Maré de Oxford Street” Virginia Woolf leva-nos a visitar as casas do casal escocês Thomas e Jane Carlisle em Chelsea e de Keats em Hampstead. Sem água canalizada, todo o trabalho de aquecimento e transporte de água para os banhos desde a cozinha até ao terceiro andar da casa dos escoceses, em que a Sra. Carlisle e a criada se afadigavam, tornavam esta casa num campo de batalha contra o frio e o pó. Virginia Woolf diz que esta casa é marcada pelo mês de Fevereiro, ao contrário da casa de Keats, uma casa despojada de móveis, com muita luz e em que reina a Primavera.

A Catedral de Saint Paul e a Abadia de Westminster não podiam deixar de ser referidas como locais marcados pela vastidão, pela serenidade e pela presença de grandes estadistas e homens de acção que aqui repousam e onde se encontram os seus nomes e estátuas jazentes.  Não menos digno de nota, uma inscrição que leu na parede de uma pequena igreja – St. Mary-le Bow – onde a memória e as qualidades de um homem comum ficaram imortalizadas.

O confronto entre o perene e o transitório que Virginia Woolf faz na referência às estátuas dos homens que ficaram na história e que existem na cidade e o dia-a-dia das pessoas comuns é aprofundado no ensaio sobre a Câmara dos Comuns. Aqui, os deputados são comparados a um “bando de pássaros num campo de terra lavrada.” ”Estes homens pouco se distinguem das pessoas normais” mas são eles que decidem da paz ou da guerra, ou das coisas mais comezinhas como a velocidade a que se pode conduzir em Londres. Virginia Woolf dificilmente os vê transformados em estátuas. “Os dias do indivíduo e do poder pessoal terminaram de vez”. e conclui que a democracia transformou o Parlamento. No entanto, o seu optimismo não é excessivo pois a democracia ainda avança a custo, lentamente e é vigiada por inúmeros polícias…

Finalmente, o último ensaio é o delicioso e pouco lisonjeiro retrato de uma londrina. Chama-lhe Sra. Crowe. É “uma coleccionadora de relações”, recebe um grupo restrito de amigos para o chá das cinco, os quais alimentam com as suas conversas frívolas a bisbilhotice de que são feitas as suas vidas. Afinal de contas para eles e para a Sra. Crowe, Londres não passava de uma aldeia e a bisbilhotice era tudo o que queriam da vida.

A ideia que perpassa da cidade de Londres nestes ensaios escritos em 1931 é de uma cidade trepidante, em que as pessoas se acotovelam, com multidões sempre apressadas, havendo até referência a turistas (pág. 67). “Os únicos sítios tranquilos …são os cemitérios.” A trepidação e o encanto da sua cidade testemunhados por esta ilustre londrina, continuam a atrair milhões de turistas um século depois. Como seria “The London Scene” escrito por Virgínia Woolf em 2019? Numa página do seu Diário de 5 de Maio de 1924 escrevia “Londres fascina, saio e é de imediato um mágico tapete colorido e eis-me transportada para a beleza, sem ter sequer de mexer um dedo.”

Mouriscas, 3 de Agosto de 2019

Almerinda