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Lendo e escrevendo

Lendo e escrevendo

"O Grande Bazar Ferroviário" de Paul Theroux

29.07.19, Almerinda

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O Grande Bazar Ferroviário, Paul Theroux, 1975

 

Um livro extraordinário, de que tirei inúmeras notas, fiz imensas anotações e sublinhados, assinalei páginas… Foram cinco semanas de viagem, a acompanhar os quatro meses que Paul Theroux levou desde que partiu em Setembro de 1973 de Londres e a que regressou no início de Janeiro de 1974. Não conseguiu cumprir a promessa de que estaria em casa antes do Natal, apenas tendo conseguido durante a viagem no Transiberiano apanhar um programa da BBC que passava algumas canções de Natal!

A edição da Quetzal abre com um texto de Francisco José Viegas e um belíssimo prefácio que Paul Theroux decidiu fazer ao seu livro em 2008. O mundo tinha mudado muito entre 1973 e 2008 e ele sentiu necessidade de “explicar” o que o levara a escrever aquele livro, o seu primeiro livro que ele não quis rotular de “livro de viagens” por desprezar essa designação que associa a turismo de massas, a interesses comerciais, a luxo e comodidade, tudo aquilo que ele deixou em casa, quando decidiu aceder a um convite de uma editora para escrever sobre uma viagem. A ideia de movimento, da verdade da viagem, de ir sozinho, anónimo e ser autosuficiente agradava-lhe, ele que já viajara antes, já trabalhara em diferentes países, mas nunca escrevera sobre a experiência da viagem, de apanhar comboios, de conhecer passageiros, de ouvir diálogos.

Uma viagem longa a partir da Europa, entrando na Ásia pela Turquia, seguindo pelo Irão, Afeganistão e Paquistão até à Índia e Ceilão, entrando na Birmânia, passando pela Tailândia, Laos, Malásia, Vietname, Japão, Extremo Oriente Soviético, Sibéria, Polónia, Holande e de novo Inglaterra. Foram 30 comboios, alguns com nomes míticos, poucos aviões e barcos, sempre que a ligação de comboio era impossível. Comboios de todo o tipo, todos diferentes e com “personalidades” próprias: Expressos, Locais, Correios, de passageiros, o Expresso de Bombaim que afinal era mais um comboio local que expresso com as paragens constantes dos passageiros que accionavam o alarme para assim se apearem e ficarem mais perto de casa… já sem falar da viagem na carruagem privativa do director dos Caminhos de Ferro Vietnamitas, ou o Super Expresso “Raio de Sol” para Quioto, o comboio de passageiros mais rápido do mundo (pelo menos nessa altura) que fazia os 500 kms entre Tóquio e Quioto em menos de três horas.

A escrita de Theroux é tão vívida, que é impossível não sentir que se viajou com ele, que se conheceram pessoas bizarras, que se descobriu que cada comboio é uma incógnita, pois pode ou não ter carruagem-cama, vagão-restaurante, que nos dois primeiros meses o sol brilhou, que a primeira chuvada foi na Índia e que as monções trouxeram inundações e o risco de colapso de pontes na Tailândia, e que foi na Birmânia que teve a primeira sensação de frio que depois se intensificou drasticamente no Japão onde a neve e a aproximação da viagem gélida através da Sibéria o obrigaram a comprar roupa quente para substituir a roupa fresca e puída que usara até então.

Se teve de ser vegetariano à força na Índia onde teve os primeiros desarranjos intestinais, ou se fingiu que comia pardalinhos na Birmânia, aprendeu que em muitas estações onde paravam havia vendedores de produtos locais que respondiam à inexistência de vagões-restaurante em muitos dos comboios. E se isso era impensável nas estações no Japão, em que a saída de passageiros na estação e a partida do comboio era uma questão de segundos, noutros comboios o drama de perder o comboio não se colocava. E aqui não posso deixar de referir uma personagem bizarra – Duffill – que, na atrapalhação de ir comprar víveres para a viagem com destino à Turquia, perdeu o Expresso do Oriente logo em Itália, o que deu origem ao verbo “duffilar”. Pois em quatro meses de viagem, o autor só ficou “duffilado” em Moscovo onde ficou retido dois dias, não lhe tendo sido permitido embarcar no comboio para a Polónia, por não ter visto de trânsito.

Imaginamos Paul Theroux com o seu cachimbo, óculos, mapa, livros e blocos de apontamentos, aonde vai anotando todos os detalhes e impressões de viagem. Na passagem por Itália estava a ocorrer uma epidemia de cólera; em Istambul soube da morte de Pablo Neruda no Chile que acabara de ser tomado de assalto por Pinochet; a imagem omnipresente de Ataturk parecia que tinha feito congelar a cidade desde 1938, ano em que morreu; no Irão e em Teerão que lhe deixou uma impressão muito negativa, deparou-se com duas realidades distintas com mulheres de saia e blusa e outras totalmente cobertas com véu e com o rosto tapado; a presença dos americanos ligados à extração do petróleo na região; o suborno (bakchich) como prática corrente para se conseguir qualquer coisa; o Balochistão em guerra; o Afeganistão e o Paquistão como zonas de conflito; a péssima impressão deixada por Cabul, ao contrário de Peshawar; os hippies; a droga. A Índia como um grande país, muito diverso e muito dividido, as aldeias, as estações de comboio apinhadas onde os indianos literalmente viviam, o lixo, a degradação, as pessoas mutiladas que mendigavam, a prostituição infantil. Madrasta, que um indiano lhe disse que era onde estava “a verdadeira Índia”, foi onde teve o primeiro susto da viagem com um taxista que lhe colocou o dilema: praia ou rapariga? A estranheza daqueles a quem dizia querer ir ao Ceilão, um país marcado pela fome, pobreza, mendicidade e ociosidade, pois segundo eles no Ceilão “não se passa nada”. Nessa viagem para o Ceilão (Sri Lanka) teve o comboio todo por sua conta e em Columbo fez uma conferência sobre literatura norte-americana, como aliás já tinha feito em Istambul e como faria em Bombaim, Calcutá, Saigão, Hué e Hokkaido.

A foto da capa da autoria de Oleh Slobodeniuk não está referenciada quanto ao local. Quero, no entanto, ver nela a viagem que Paul Theroux fez a Gokteik no norte da Birmânia. Uma viagem, uma verdadeira ousadia, cheia de dificuldades e perigos por os comboios serem alvo de constantes ataques de rebeldes e de ladrões e que, no fim, quando ele pensava que iria parar à cadeia, o aconselharam a não repetir. Birmânia, Laos, Tailândia, Malásia, Singapura, Vietname na época das monções, foram os destinos que marcaram a viagem a caminhar para o fim. No meio de paisagens de uma beleza indescritível, são notórias a indústria do sexo e o caos deixado nos despojos da aventura de guerra dos americanos na península da Indochina: acampamentos acupados por refugiados, hospitais pilhados, crianças louras que falam vietnamita, instabilidade, vulnerabilidade e insegurança. Numa nota de rodapé, o autor refere que em 1975, grande parte das cidades por onde passou dois anos antes, tinham ido pelos ares com muitas centenas de mortes.

No Japão para onde voa, encontra uma sociedade totalmente diferente. Um “povo programado”, disciplinado, mergulhado na parafernália electrónica, onde tudo é veloz e eficiente e angustiante; estranhamente consumindo entretenimentos de erotismo violento em que o sadismo está banalizado em espectáculos para turistas, em bandas desenhadas, em filmes. É exactamente em Hokkaido – “A Terra do Grande Céu” – que o fascina pela beleza natural e que fotografa à exaustão, que Paul Theroux tomou a decisão de escrever este livro. Sente-se que o autor começa a sentir os efeitos do cansaço, o desejo de que a viagem chegue ao fim. Olha para trás, para as semanas que decorreram e para as terras e pessoas que conheceu e sente a necessidade de fazer sínteses, de fazer avaliações. Decide que o título do seu livro será o nome de uma rua na Índia “O Grande Bazar Ferroviário”.

Tal como a viagem de avião de Da Nang para Saigão tinha sido assustadora, a viagem de barco no Mar do Japão que faz a ligação Japão-Rússia não foi menos. A ligação de Khabarovsk – recorda Tchékhov que por lá passou quando em 1890 esteve durante alguns meses em Sacalina – até Moscovo pelo Transiberiano (10 mil kms) é a mais longa viagem de comboio do mundo e vai ser a parte mais penosa da viagem. Não só pela distância, mas pelo cansaço, pela uniformidade da paisagem, pelo frio (34 graus negativos), pela solidão, pelas saudades de casa, pelo sentimento de culpa, pelos pesadelos em que a mulher e o filho aparecem e, embora tente criar uma disciplina que o ajude a sobreviver, a verdade é que o ambiente dentro do comboio não permite. Depois de passarem o Extremo Oriente Soviético seguindo ao longo da Mongólia em que as bétulas e os cedros são a paisagem para além da imensidão da neve, a Sibéria só começa depois de Irkutsk e depois temos a tundra. Perde a noção do tempo, “o desespero faz-me fome” “raramente sabia onde estávamos, nunca sabia as horas correctas e detestava cada vez mais aquelas geleiras que tinha de atravessar para ir para o vagão-restaurante.” e a urgência de chegar é tudo o que tem. A bebida é a companhia dos russos e ele é o único ocidental no comboio, pois lá bem atrás os seus companheiros tinham apanhado o avião para Moscovo, fazendo em 9 horas a viagem que ele precisava de fazer em vários longos dias.

Falta-me falar dos passageiros e dos livros ou das referências literárias que a viagem lhe evocou. Duffill que partira de Londres com ele e que se tinha perdido a meio do caminho antes de chegar a Istambul e Molesworth, companheiros na viagem no Expresso do Oriente; Sadik o turco a caminho da Austrália, “foi boa companhia num troço maçador da viagem”; um indiano que vivera toda a vida em Inglaterra e que se queixava das atitudes racistas dos ingleses, tal como Radia que trabalhara 30 anos na SHELL apelidandos os ingleses de exclusivistas e dominadores; um alemão que fugira de um centro de reabilitação a caminho da Índia e que se alimentava de ópio e água; Vishnu um indiano de Simla que vaticinou que um dia voltariam a encontrar-se no Reino Unido ou nos EUA, o tal que lhe indicara que em Madrasta encontraria ele a verdadeira Índia; em Jaipur, o sr. Goipal, contacto da embaixada e que em princípio seria um facilitador ao nível da comunicação, revelou-se um verdadeiro desastre; um monge budista americano pouco dado a conversas; um jovem inglês aparentemente a fugir da namorada indiana; o sr. Bernard um birmanês que havia sido chefe de cozinha o que lhe permitira conhecer pessoas muito importantes e participar em eventos especiais, convida-o a pernoitar na sua casa onde, num quarto com lareira é brindado com uma refeição principesca como há muito não comia; e ainda dois altos funcionários do Bangladesh responsáveis por planeamento familiar nas áreas rurais e que vinham de uma conferência sobre esse tema.

Da lista de livros que Theroux escolheu e levou e sobre os quais foi escrevendo à medida da sua narrativa, lembro “A Pequena Dorrit” de Charles Dickens, autor que ele evoca em Calcutá, por esta cidade do norte da Índia lhe lembrar a Londres de Dickens. “Ariadne” e outros contos de Tchékhov, a pensar em Sacalina onde se localizava a maior penitenciária russa*. “Autobiografia de um Iogue” de Paramahansa Yogananda, Na passagem por Lahore recorda Kipling que aí viveu e trabalhou, Bombaim a que estão ligados Mark Twain que lhe dedica um capítulo de “Following the Equator” e V. S. Naipaul que relata em “An Area of Darkness”uma situação em que entra em pânico numa estação ferroviária de Bombaim. “Exilados” de James Joyce, poemas de Browning ou “O Canto Estreito” de Somerset Maugham. “Silêncio” de Shusaku Endo, ou “Contos Japoneses de Mistério e Imaginação" de Hirai Taro são outras obras que fui identificando ao longo da leitura de “O Grande Bazar Ferroviário”.

E se as minhas notas já vão longas, revelando alguma incapacidade de síntese, a verdade é que me foi difícil não colocar aqui algumas transcrições. Concluo dizendo que este não é um roteiro turístico, mas tão só uma viagem solitária feita por Paul Theroux, longe das comodidades do turismo de massas. Um registo na primeira pessoa de alguém que possibilita quem o lê a viajar com ele e a deitar abaixo uma visão etnocêntrica da realidade. O mundo é muito mais do que o lugar onde nascemos e vivemos.

Foi muito bom viajar com este autor que ainda não conhecia. E penso que comecei da melhor maneira.

 

*Em 2018, a Barraca levou à cena no TeatroCinearte a peça “A Volta o Mar, no Meio o Inferno”, sobre a experiência vivida por Tchékov em Sacalina, (21 de Abril a 8 de Dezembro de 1890), onde faz o “recenseamento da população local e um extenso levantamento sociogeográfico da região.” Nota da publicação editada pelo TeatroCinearte

 

 

23 de Julho de 2019

Almerinda Bento

 

 

 

Não avisei que ia viajar?

24.07.19, Almerinda

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Fiz em 5 semanas o que Paul Theroux demorou 4 meses a fazer. Apanhámos 30 comboios, mas às vezes tivemos de ir de barco ou de avião para chegar a alguns países. Ficámos maravilhados com a diversidade de culturas, de paisagens e de companheiros  de viagem. Concluímos que o etnocentrismo só pode ter origem na ignorância, na tacanhez, na pequenez de achar que o mundo passa apenas pelo que nos rodeia e que somos o centro do mundo.

Espantámo-nos, cansámo-nos, ansiámos regressar a casa, à nossa cama, à nossa família, mas percebemos que o mal está no começar. Torna-se um vício. Nunca mais se vai deixar de viajar.

Qual será o próximo destino?

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Palavras Cruzadas - Parte 2 - Palavras para quê?

20.07.19, Almerinda

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Com umas letras muito pequeninas, assim responde o Expresso às muitas centenas de cartas ao director que deve ter recebido esta semana, pela forma como tratou os professores no passatempo de palavras cruzadas do passado fim de semana.

Transcrevo a Nota, desta vez com letras que não precisam de lupa:

«Nota - No seguimento das dúvidas levantadas pelo passatempo Palavras Cruzadas nº 2282 publicado na edição da passada semana, esclareço que não houve qualquer intenção de denegrir a imagem dos professores, profissão que me merece todo o respeito. A quem se tenha sentido ofendido, aqui fica o pedido de desculpas devido.»

Realço as seguintes palavras-chave na nota que o Expresso se dignou fazer: dúvidas, esclareço, respeito, pedido de desculpas.

Palavras para quê? É a arrogância no seu melhor.

 

 

Quando umas simples palavras cruzadas trazem água no bico...

16.07.19, Almerinda

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Claro que me senti ofendida!

Eu que até costumo comprar o "Expresso" e me demoro nalguns artigos e nalgumas secções da Revista, mas nem sou muito amante de Palavras Cruzadas, fiquei perplexa com a forma insidiosa como se passa uma "mensagem" preconceituosa, reaccionária, redutora, discriminatória ... (podia acrescentar mais adjectivos) para apoucar uma classe profissional. Por acaso a minha classe profissional mas não foi por isso que me senti ofendida. O professorado tem uma relevância e importância fundamentais, pois dele tudo ou quase tudo deriva. Aliás, pede-se-lhe tarefas muito para além do que é suposto, sabendo-se quantas vezes a Escola e os seus profissionais substituem a Família, sobretudo nas sociedades actuais em que as crianças tantas vezes são "despejadas" nas escolas, enquantos pais e mães trabalham para além do horário normal para garantir um emprego precário ou algum dinheiro a mais ao fim do mês!

Pois é um jornal dito de "referência" que tem o desplante de definir "professor" desta forma. Sim, os professores fazem greve, é um direito que lhes assiste e não o fazem de ânimo leve, não o fazem por motivos fúteis. Mas definir um profissional assim, seja professor/a, operário/a, advogado/a, médico/a, enfermeiro/, juíz/a, camionista, bancário/a, motorista, jornalista ... revela um espírito tão pequenino e deixar passar este "lapso" num inofensivo "passatempo" de palavras cruzadas, logo na primeira linha horizontal, revela bem a falta de respeito, a falta de vergonha de quem o produziu? Chama-se Marcos Cruz (devia ser escrito em minúsculas) o autor deste nojo; é a direcção do Expresso que está em causa, porque deixou passar! 

Os sindicatos de Professores (FENPROF e SPGL) já exigiram um pedido de desculpas por parte do Expresso. Os Professores, as Professoras, estão fartos de ser desqualificados, de lhes serem descontados anos e anos de serviço, como se não tivessem trabalhado anos a fio!
Afinal são estes marcos cruz que, subrepticiamente, vão fazendo passar mensagens e ideologia que levam ao poder monstros como os Trumps, os Bolsonaros e tantos e tantos outros.

Gente que odeia o 25 de Abril e que vai pondo as unhas de fora.

 

 

Eu tenho muitos amores

07.07.19, Almerinda

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Quando chega o mês de Julho e começo a limpar e organizar o que fui acumulando ao longo dos últimos meses, reforço a minha imagem de dispersão, duma vontade imensa de querer experimentar, de não fechar a porta a... e lembro-me sempre duma frase duma colega que na altura me deixou perplexa: "Tu nunca chegas ao fundo das coisas!"

Acho que ela queria dizer que eu nunca aprofundava, que tinha medo de entrar num poço de onde não mais saísse, que ficava pela rama das coisas para não ferir susceptibilidades. Talvez tivesses razão, Maria.

Mas eu acho que gosto desta dispersão, de gostar de gostar, de me aventurar em coisas novas, de achar que poderei aflorar mais um caminho, mas sem querer entrar no poço, para ali ficar.

Ler, escrever, desenhar, pintar, viajar, cozinhar, passear, extasiar-me com uma montanha, uma árvore, uma flor, um pôr-do-sol inacreditável... amar a política para fazer o mundo ser mais justo e decente, acreditar que a revolução só será se for feminista e indignar-me quando leio o que se passa no mundo e aqui mesmo na terra onde vivo!

Outros, outras serão mais dados/as a fazer aquilo que a Maria gostava que eu fizesse, mas eu, desculpa lá Maria nasci para ter muitos amores!