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Lendo e escrevendo

Lendo e escrevendo

Memórias - Visconde Juromenha

28.06.19, Almerinda

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Memórias

Estou convencida que a classe docente é, porventura, uma das que têm mais histórias para contar. Vidas atribuladas, com a casa às costas, não sabendo como vai ser o ano a seguir. Uma terra nova, uma escola nova, novos colegas, novos alunos. Cada ano era sempre uma novidade, mesmo que se tivesse a sorte ou o azar de ficar na mesma escola.

O primeiro ano é quanto a mim inolvidável. Antes do 25 de Abril, na velhinha Escola Comercial e Industrial de Olhão, que tinha ganho espaço com as instalações do antigo matadouro desactivado, ali mesmo ao pé do mercado municipal, foi-me atribuído um horário de 30 horas lectivas! 10 turmas, Português, Inglês e História! Eu, que ainda andava a fazer as Pedagógicas e que tinha concluído o 3º ano de Germânicas, com aulas de segunda a sábado, só conseguia ir a casa nas férias ou para fazer as frequências das ditas Pedagógicas. Memórias de alunas quase da minha idade e também de crianças carentes, de crianças que gostavam de me acompanhar até casa, já que era o caminho que faziam desde a escola até à estação para apanharem o comboio até casa. E um dia, a advertência do director que me chamou para me dizer que “não ficava bem” aquele rancho de miúdos todos os dias atrás de mim! Afinal eu era uma professora! Talvez quisesse que os enxotasse?! Quando perto do final do ano adoeci (exactamente no Dia da Espiga em que estava combinada uma ida ao campo com uma das turmas) o meu quarto estava sempre cheio de flores – rosas – apanhadas nos canteiros da estação dos comboios pelos mesmos meninos e meninas que costumavam fazer-me escolta!

Depois de Olhão, Santiago do Cacém, Mem Martins, Amora, Seixal, Paio Pires e de novo Amora, embora todas estas últimas sejam escolas do mesmo concelho do Seixal.

Em todas elas fiz amizades e tenho recordações, embora seja a Paulo da Gama a minha maior referência, aquela a que posso chamar a minha escola do coração. Foi lá que fiz o estágio, foi lá que conheci os/as colegas mais dedicados à escola, aos alunos, ao ensino, aos projectos e onde vimos crescer muitos jovens a quem dedicámos o melhor dos nossos saberes e afectos. Não é por acaso que alguns desses jovens, hoje adultos, são nossos amigos no facebook e que vamos de algum modo acompanhando e mantendo laços de amizade. Não é por acaso que todos os anos, em Janeiro, juntamos perto de quarenta aposentados/as da Paulo da Gama num almoço de Ano Novo. Conseguimos, através da escola, estabelecer um vínculo que persiste para além do tempo e que resistiu às mudanças nas nossas rotinas.

Mas de todas as escolas que me marcaram, quero neste pequeno testemunho falar do ano de 77-78 quando estava a leccionar na Escola Preparatória Visconde de Juromenha, em Mem Martins. Era uma escola um pouco isolada, a especulação imobiliária estava no seu começo e as Mercês ainda não eram o amontoada de prédios dos nossos dias. Era um risco descer na estação das Mercês e ir a pé pelo pinhal até à escola, tanto mais que havia notícias de crianças que haviam sido atacadas por um predador à solta. Por isso descia-se na estação anterior – Rio de Mouro – e aguardava-se pela camioneta que ia directa da estação para a escola. A escola era pouco simpática, pouco acolhedora, era um edifício isolado e os assaltos ao fim de semana uma constante. No inverno, era preciso acender as luzes mais cedo e os poucos retroprojectores em uso mais outro equipamento ligado eram o suficiente para deitar abaixo o quadro eléctrico com capacidade muito limitada para as necessidades. Mesmo com restrições de uso, a verdade é que muitas das vezes a última aula da tarde já não era possível de dar, porque era impossível trabalhar sem luz. Concomitantemente, o Ministério da Educação não homologara a equipa de professores que tinha sido eleita para o Conselho Directivo da escola e em sua substituição indigitou um professor da sua confiança, uma primeira tentativa de restaurar a figura do director. Sottomayor Cardia, o então Ministro da Educação, respondia assim aos sectores mais conservadores da sociedade que nunca tinham visto com bons olhos que as escolas fossem dirigidas por professores eleitos pelos seus pares. Talvez pareça estranho o que se passou (muito estranho mesmo), mas a verdade é que os assaltos à escola ao fim de semana mais as falhas de luz que impediam o normal funcionamento da escola da parte da tarde e a recusa por parte do corpo docente em aceitar um professor que se gabava de ter uma moca de Rio Maior no seu carro, para além de exibir as suas preferências por figuras do antes do 25 de Abril, começaram a gerar um clima na comunidade e no seio de alguns encarregados de educação, a suspeita de que os assaltos tinham por detrás os professores da tarde que não queriam trabalhar! A larga maioria dos professores da tarde eram professores provisórios e eu era uma de entre eles.

Até que um dia, aos 71 professores eventuais da Visconde Juromenha foi barrada a entrada na escola. Só os professores efectivos tinham acesso. Os suspeitos eram os professores provisórios e portanto era preciso impedi-los de entrar nas instalações. Mas como grande parte das aulas era dada por estes, criou-se um vazio que o ministério, de forma atamancada, como aliás todo aquele processo, colmatou colocando nos jornais diários um anúncio na secção dos anúncios a contratar professores. Um processo que devia/deve encher de vergonha qualquer ministério da educação que se preze do seu nome e da sua missão. Foram vários os candidatos que responderam ao anúncio, sem saberem que programas iam dar, sem conhecerem os manuais adoptados, simplesmente com a perspectiva de poderem em dois meses arranjar algum dinheiro para as férias…

Foi um processo vergonhoso, mas muito rico em ensinamentos e solidariedades. Antes de tudo, referir a Francisca. Uma colega de História, professora efectiva e que desde a primeira hora se pôs ao nosso lado, como se ela também fosse eventual. Era uma senhora de cabelos brancos, serena, determinada, que deixou sem resposta os três inquiridores ao lançar-lhes se não tinham vergonha de suspeitar de pessoas que não tinham quaisquer culpas e de contratarem para nos substituir pessoas sem qualquer qualificação para a docência. Essa ousadia valeu-lhe uma pena que posteriormente lhe foi retirada e que veio averbada em Diário da República. Depois, o papel do nosso sindicato, através do Pascoal e do Óscar. Enquanto duraram os inquéritos, diariamente, os dois acompanharam-nos, aconselharam-nos, deram-nos todo o apoio. A razão estava do nosso lado, mas a pressão psicológica motivada pelos inquéritos presenciais como se estivéssemos num tribunal, mais as notícias no pasquim “O Crime” onde aparecíamos como os autores dos assaltos à escola, eram geradores duma grande ansiedade. Sem as reuniões com os dirigentes sindicais, sem o apoio psicológico e financeiro, pois todos os sindicalizados receberam o seu salário durante aquele tempo em que estivemos impedidos de trabalhar, não teríamos conseguido aguentar todos os 71 até ao fim, como uma equipa que estava ali para resistir e vencer. E assim foi, resistimos e vencemos e o Ministério foi obrigado a readmitir-nos, pois éramos nós os professores daqueles alunos, éramos nós que os conhecíamos, éramos nós que lhes tínhamos dado as aulas e que os podíamos avaliar. Estávamos no final do ano e era preciso fazer a avaliação final. O Ministério da Educação chumbou!

Sempre me lembro deste episódio na minha vida profissional. Um episódio extremo de prepotência por parte do Ministério para com os professores. Um episódio em que o Ministério passou por cima da legalidade e da democracia para impor uma concepção de direcção da escola. Um episódio em que a união e solidariedade dos professores e do SPGL foram exemplares e que deve ficar nos anais da nossa história sindical. De que devemos orgulhar-nos.

Almerinda Bento

Nota: Sei que tenho algures o recorte do jornal com o anúncio a pedir professores para a Visconde Juromenha. Um documento que devia corar de vergonha quem na altura deu ordens para o publicar.

Este texto foi publicado em "Memórias 2018/2019", um projecto do Departamento de Professores e Educadores Aposentados.

A fotografia que encima este post foi publicada no Escola Informação nº 287 Maio 2019.

 

 

I'm a crazy Cat lady

23.06.19, Almerinda

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Não consegui resistir a esta capa. Lá dentro uma história de amor entre um casal de velhos suecos e uma gata. Gata e não gato. Um livro de capa dura, com folhas com uma textura agradável ao tacto, desenhos deliciosos de Ane Gustavsson, uma leitura rápida e na qual, quem tem um gato, se revê.

Um dia, sem ser planeado nem desejado, uma gata instala-se na vida deste casal, habituado a viajar e a usufruir de uma reforma confortável. Como se costuma dizer, não foram eles que a escolheram, foi a gata que os escolheu a eles, que os adoptou. De forma subreptícia, impôs-se. Como era possível continuar a deixar aquele pobre gatinho a dormir no cesto das ferramentas no barracão do jardim naquele Inverno tão rigoroso e gélido? Teria fome? De quem seria?

Começa-se a dar ração e água e daí a pouco ela vai-se aproximando até que se empoleira na janela e aparece mal os proprietários da casa e do barracão abrem a janela ou a porta da entrada... Depois é a primeira ida ao veterinário, saber se é gato ou gata, a castração, as mudanças na vida do casal e na casa com a presença da gata, a abertura de uma gateira como solução sobretudo quando as ausências são mais prolongadas, as brincadeiras, a companhia, os hábitos de caçar ratos e de os trazer para casa... A tristeza e a sensação de perda, na primeira vez que ela desaparece, a habituação às rotinas e à personalidade da gata.

O autor e dono da gata é psiquiatra e tenta perceber o que "pensa" a sua gata, como reage e por que reage de certa maneira e,  sabendo que a lógica dos humanos não consegue chegar ao insondável dos felinos domésticos, acaba por se habituar a aceitar as subtilezas e imprevisibilidades de que é feita a vida da sua gata. Nas suas reflexões não deixa de referir autores apaixonados por gatos e a quem dedicaram livros e/ou poemas, como por exemplo Doris Lessing ou T. S. Eliot.

Chama-lhe Bichana, outras vezes Marota ou Dorminhoca e, a propósito do nome que se deve dar a um gato, lembra o poema de T.S.Eliot que refere que um gato deve ter 3 nomes: o primeiro deverá ser aquele por que é chamado habitualmente, o segundo deverá ser um nome único, especial, que mais nenhum gato tenha e que faça jus ao seu orgulho de gato e o terceiro será um nome secreto que só o próprio gato conhece e que nunca nenhum humano alguma vez conseguirá descobrir!

O poema "The naming of Cats" da autoria de T.S.Eliot é delicioso

The Naming of Cats is a difficult matter,
It isn’t just one of your holiday games;
You may think at first I’m as mad as a hatter
When I tell you, a cat must have THREE DIFFERENT NAMES.
First of all, there’s the name that the family use daily,
Such as Peter, Augustus, Alonzo, or James,
Such as Victor or Jonathan, George or Bill Bailey —
All of them sensible everyday names.
There are fancier names if you think they sound sweeter,
Some for the gentlemen, some for the dames:
Such as Plato, Admetus, Electra, Demeter —
But all of them sensible everyday names.
But I tell you, a cat needs a name that’s particular,
A name that’s peculiar, and more dignified,
Else how can he keep up his tail perpendicular,
Or spread out his whiskers, or cherish his pride?
Of names of this kind, I can give you a quorum,
Such as Munkstrap, Quaxo, or Coricopat,
Such as Bombalurina, or else Jellylorum —
Names that never belong to more than one cat.
But above and beyond there’s still one name left over,
And that is the name that you never will guess;
The name that no human research can discover —
But THE CAT HIMSELF KNOWS, and will never confess.
When you notice a cat in profound meditation,
The reason, I tell you, is always the same:
His mind is engaged in a rapt contemplation
Of the thought, of the thought, of the thought of his name:
His ineffable effable
Effanineffable
Deep and inscrutable singular Name.

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A minha paixão por gatos é tardia e comecei a preparar a perspectiva de um gato na família, quando me reformasse. Tal como a perspectiva de que mais tempo para a leitura só seria possível quando me reformasse. E estes dois objectivos estão mesmo ligados. Andava a ler "Gatos e mais Gatos" de Doris Lessing quando a minha amiga Esmeralda me propôs a adopção de um gatinho que veio de Almada para viver connosco. De seu nome Gaspar. Sem segundo nome. Se tem um terceiro nome, nunca saberemos, porque ele nunca o confessará!

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Em Tudo havia Beleza [Ordesa] de Manuel Vilas

18.06.19, Almerinda

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Em Tudo havia Beleza  [Ordesa], Manuel Vilas, 2018

“Obrigada à vida, que me deu tanto.

Deu-me o riso e deu-me o pranto.

Assim distingo a sorte do quebranto,

os dois materiais que compõem o meu canto,

e o canto de vocês, que é o mesmo canto,

e o canto de todos, que é o meu próprio canto.”

                                                                               Violeta Parra

Abrir um livro em que o autor tenha escolhido para epígrafe este belo poema de Violeta Parra é, desde logo, um bom augúrio. À medida que se vai progredindo no livro, constituído por centena e meia de capítulos ou quadros, alguns muito breves, entramos na intimidade do autor/narrador que logo no início nos fala da sua dor e da impossibilidade de a medir ou quantificar. No seu caso, a somar aos infortúnios ou percalços da vida, a dor pela perda do pai e da mãe. Uma dor que ele vai tentar superar, se é que tal é possível!, pela escrita deste livro e pela fuga para um lugar mágico da sua infância, um lugar num vale cercado de montanhas onde foi muito feliz com os pais. Ordesa é esse lugar mágico, “Ordesa” é o nome original deste livro traduzido por Vasco Gato e que na sua versão portuguesa é “Em Tudo havia Beleza”.

Professor durante 23 anos, com um historial de abuso de drogas e de álcool a que consegue sobreviver, pai de dois filhos com quem a comunicação não é fácil, o seu divórcio aos 52 anos vai ter um efeito novo na sua vida. Tudo tem de ser reorientado, tudo passa a ter outro significado que o vai levar a dar à vida e morte dos pais uma importância que antes nunca tinha dado. Ele projecta-se nos pais, culpa-se por não lhes ter feito as perguntas para respostas que hoje já não pode ter, e antevê nos filhos aquilo que eles também sentirão quando ele já não existir. Sobretudo, culpa-se por aquilo que deixou de fazer, por aquilo que não verbalizou , pelos abraços que nunca conseguiram dar, talvez por pudor, as provas de amor que ficaram por dar e que agora já não são possíveis de demonstrar. Muitas vezes pensa e coloca-se no papel de uma terceira pessoa que lhe fala, lhe dá conselhos, ideias e sugestões, como que se distanciando dele, assumindo uma voz crítica. Há aspectos a que volta, que repisa, que repete, vertendo para o papel os medos, as dúvidas, as hesitações, os fantasmas.

Por isso, ao lê-lo senti que era um livro que fazia muito sentido, que fazia todo o sentido, porque é muito verdadeiro, muito palpável. Revi-me muitas vezes nele, encontrei-me nele e dei por mim por vezes a pensar: isto podia ter sido escrito por mim. Mas também penso que, pelo facto de a dor da morte e da perda definitiva estar sempre subjacente no livro, a sua leitura não será fácil para quem tiver esse sentimento de perda e de luto ainda muito recente. Não é fácil.

Enquanto é muito preciso nas datas de muitos acontecimentos da sua vida – nascimento em 1962; “No dia 9 de Junho de 2014 deixei de beber”; anos do nascimento,  casamento e cremação dos pais; concepção em Novembro de 1961; “Escrevo estas palavras a 9 de Maio de 2015” – a data do seu divórcio é imprecisa pois “não se sabe muito bem o momento, pois não é uma data, mas um processo…” É crítico e cáustico relativamente à instituição casamento. Transcrevo duas passagens, a primeira decorrente dum almoço com gente da cultura para que foi convidado pelo rei Felipe e por Letizia

 “É normal sentir compaixão pelos casais, especialmente pelos casais que começam a acumular anos de vínculo conjugal, porque todos sabemos que o casamento é a mais terrível das instituições humanas, pois requer sacrifício, requer renúncia, requer negação do instinto, requer mentira atrás de mentira, proporcionando em troca a paz social e a prosperidade económica.” (pág. 40)

A segunda, em que recorda o tio Rachmaninov, o irmão do pai

“E, para cúmulo, o Rachma divorciou-se. Isso é que foi espantoso.(…) O mais curioso é que lhe invejei essa vida. Julgo que o casamento de longa duração não é próprio da natureza humana. Fico contente que o Rachma tivesse sabido dar-se conta disso. Imagino que tenha sido isso. Os homens aceitam os casamentos de longa duração porque deixam de acreditar na juventude. 

Penso que após o seu divórcio se terá transformado noutro homem. Bem, entendo assim que o Rachma disse não a essa ordenação simbólica da realidade que existe por trás do casamento de longa duração, que é um pesadelo, que é uma prisão; claro que quem vive nesses casamentos sorri, e parece tratar-se de um sorriso verdadeiro. Acho que os casamentos de longa duração não valem a pena, percebo que esta afirmação seja exagerada, mas a renúncia às paixões também é um exagero do sacrifício razoável. Certos antropólogos dizem que a monogamia não é natural. Essa feira interminável de infidelidades entre homens e mulheres, de mal-entendidos dolorosos, está por trás da imposição da monogamia.

Talvez tenha sido o capitalismo eclesiástico a inventar os casamentos de longa duração.” (págs. 347 e 348)

E depois os lugares pontuam as diferentes fases da vida, desde logo Barbastro na região do Alto Aragão onde nasceu, Saragoça onde estudou, Madrid a imensa capital política, Ordesa e as montanhas que a cercam, a poderosa Catalunha ligada às viagens do pai quando o negócio do têxtil estava florescente e a Galiza onde o irmão do pai casou e se estabeleceu. Um mosaico da Espanha franquista, da Espanha pobre a que a sua família sempre pertenceu mesmo quando a prosperidade momentânea do caixeiro-viajante ou o sonho da sala exclusivamente usada pelas visitas da mãe não passaram de um breve episódio nas suas vidas. E depois fica o desamparo, a solidão, apanágio de quem é pobre, de quem só pode comprar electrodomésticos de marca branca, ou de quem opta por ter uma sala grande sem serventia em vez de uma casa de banho em condições! Do outro lado a monarquia e os que gravitam à volta do poder. A ironia em torno da Espanha e do seu povo não poupa os pais que não ligam a nada da política, para quem os interesses não vão além dos programas de culinária na televisão (o pai) ou o acompanhar todos os detalhes da vida de Julio Iglesias (a mãe).

O autor/narrador expõe-se, revela-nos acontecimentos marcantes da sua vida e nomeia os membros da sua família à medida que eles vão surgindo no livro com nomes de grandes mestres da música. O pai é Bach, a mãe é a Wagner, Vivaldi e Brahms são os nomes que dá aos filhos, Monteverdi e Händel são os tios maternos e Rachmaninov o tio irmão do pai, a viver na Galiza. Até ao rei ele dá um nome – Beethoven – o rei dos músicos. E depois a figura sinistra do padre G. que ele recorda como alguém que é o Mal, alguém cujo toque provocou nele um apagão, desde sempre associado a um sentimento de medo, o medo típico da vítima que se acha culpada do mal que lhe provocaram.

O pai – Johann Sebastian – é constantemente recordado como uma pessoa boa que atraía os desventurados. São muitas as marcas, anotações e sublinhados que fiz, mas deixo aqui apenas alguns em torno da figura do pai.

“O meu pai foi um artista do silêncio.” “A medicina ainda não é inteligente, é ainda uma simples prática, simples constatação de factos. Tem de descobrir a beleza e a salganhada imaterial de um tumor cancerígeno, porque num tumor cancerígeno também está a vontade de vida do corpo do homem que o traz dentro de si. É essa a razão de o meu pai ter escolhido o silêncio. Não havia nada a dizer. A medicina estava vazia, a religião nunca existiu, e ele já abandonara o seu carro. Os seres humanos já estavam na invisibilidade, não tinha nada para nos dizer” (pág. 70)

“Na realidade, eu nunca soube quem era o meu pai. Foi o ser mais tímido, enigmático, silencioso e elegante que conheci na minha vida. Quem foi? Não me dizendo quem era, o meu pai estava a forjar este livro.” (pág. 217)

“Éramos então pai e filho, de uma forma que nunca mais voltaríamos a ser.

Jogávamos muito bem.

Formávamos um único ser, fundíamo-nos.

Éramos amor.

Mas nunca falámos disso, nunca o dissemos.

Nunca.”  (págs. 264 e 265)

Sobre a mãe – a Wagner – limito-me a fazer esta transcrição: “Como sou parecido com a minha mãe, absolutamente igual.” (pág. 360)

Muito próximo do fim,

 “O mês de Junho aparecia por Barbastro como um deus a iluminar a vida das pessoas.

Era o paraíso. Foi o meu paraíso. Foram eles o meu paraíso, o meu pai e a minha mãe, como gostei deles, como fomos felizes e como nos desmoronámos. Que bela foi a nossa vida em conjunto, e tudo está perdido agora. E parece impossível.” (pág. 235)

Manuel Vilas tem uma produção poética intensa e a sua escrita é muita rica, mas simples, sem artifícios. Este romance autobiográfico surpreende pela escrita, mas não posso deixar de aqui referir o último capítulo (157) que se refere à noite da sua concepção quando os pais eram uns jovens a estrear a sua vida conjugal e um prédio em que tudo era  novo, em comparação com a decrepitude do mesmo prédio passados cinquenta anos. É um capítulo simplesmente belíssimo.

O epílogo – A família e a História – é como que a síntese, em poesia, das cerca de quatrocentas páginas que constituem o livro.

Termino, voltando ao princípio e ao icónico canto da grande Violeta Parra

 “ Obrigada à vida, que me deu tanto. Deu-me o riso e deu-me o pranto. …”

16 de Junho de 2019

Almerinda Bento

À sombra do Plátano

08.06.19, Almerinda

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É um plátano especial.

Poderoso, imponente, majestoso, mas doce e acolhedor.

Junto a uma ala lateral da Quinta da Fidalga, próximo de um nicho e de uns bancos de pedra forrados a azulejos antigos onde o azul impera, este Plátano impõe-se pela sua presença e por um traço distintivo. O tronco principal subdivide-se em dois ou três braços, mas um dos braços, mais à frente, como que precisou de dar a mão a um dos seus "irmãos" e juntou-se-lhe, não mais o largando. Uma maravilha da natureza. E nós ficamos a olhar por aquele "olho" aberto e a imaginar como foi possível aquele reencontro depois de alguns anos de separação, como é que aquela saudade foi superada através daquele abraço que não mais se soltou.

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Já não é a primeira vez que nos acolhemos debaixo daquele Plátano. É bom desenhar à sua sombra. O seu tronco, ramos, folhas, casca inspiram-nos. Hoje a oficina de desenho da Associação Cultural L1B dinamizada pela Manuela Rolão tinha como tema - LARANJA caneta de feltro. Éramos todas mulheres e estávamos inspiradas. Foi uma manhã maravilhosa descobrindo em nós a forma de olharmos para as trombetas da China ou para as folhas secas que ainda têm alguns tons próximos do laranja. As laranjeiras também lá estavam mas ainda a fabricarem os frutos que nos deliciarão no Inverno. Mas a Manuela trouxe-nos laranjas para desenharmos e tal como cada plátano é diferente de todos os outros plátanos, também nós vimos as laranjas e as laranjeiras à nossa maneira e desenhámo-las de formas totalmente diferentes.

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Em Julho há mais.

O tema será BRANCO papel. Como sempre a Manuela Rolão vai surpreender-nos com mais desafios.

 

 

"Viagens" de Olga Tokarczuk

05.06.19, Almerinda

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Viagens, Olga Tokarczuk, 2007

Quando comprei este livro, o primeiro gesto que tive foi procurar o índice, para perceber que viagens a autora nos queria propor. Mas não encontrei nenhum índice e à medida que fui começando a leitura, fui descobrindo capítulos ou fragmentos, mais ou menos curtos, descontínuos, que fui assumindo como uma espécie de “remendos” que teriam um nexo e que iriam constituir uma manta num patchwork final. “Viagens” foi o título escolhido pela tradutora Teresa Fernandes Swiatkiewicz para a edição portuguesa do original polaco “Bieguni”, também o título de um capítulo a meio do livro que designa uma seita de antigos crentes ortodoxos para quem o movimento contínuo era uma forma de desapego, de fugir do mal e garantir a liberdade. Das 92 edições em 18 línguas que “Bieguni” já tem e que foi galardoado com o Man Booker 2018, considero o título escolhido – “Viagens” – uma excelente tradução para um livro difícil de caracterizar.

Volto à ideia do “retalho”. Não me foi fácil avançar na leitura deste livro. Podia ter saltado de retalho em retalho, mas segui disciplinada e ordeiramente na leitura, como se de um romance com princípio meio e fim, mas a ideia de que aqueles retalhos no fim iriam fazer sentido e que alguns deixados soltos iriam no fim encontrar o parceiro a que se juntar surgiu-me, sobretudo na história misteriosa daquele casal de férias numa ilha croata em que a mulher e o filho desaparecem. O que lhes terá acontecido?

Outras histórias nos são contadas: Philip Verheyen, o anatomista, médico que descobriu o tendão de Aquiles e registou em desenhos meticulosos e perfeitos os detalhes do corpo humano, porque para ele “ver é saber”. Tendo perdido uma perna muito jovem, por lhe ter sido amputada na sequência de um incidente com um prego que lhe provocou uma infecção irreversível, viveu ao longo da vida com dores insuportáveis na perna amputada, a que chamava “fantasmas”. Tendo conservado o membro amputado numa solução própria para que não se degradasse e apesar do seu desejo de que, quando morresse, a perna amputada acompanhasse o seu corpo, a verdade é que tal não aconteceu. Consideraram que Philip Verheyen tinha morrido louco.

Outra história é a da colecção de amostras anatómicas de Ruysch que foi comprada pelo czar Pedro I da Rússia. Para Charlotta, filha de Ruysch, que nunca casou e que dedicou toda a vida ao trabalho do pai, aquela separação da colecção de peças anatómicas que o pai criara e que ela sempre acompanhara, foi um desgosto que a levou a pensar partir num dos barcos ancorados no porto holandês, fazendo-se passar por homem…

 E a história de Annuszka da sua vida com um filho doente, um marido “mutilado” de guerra, com um dia por semana em que a sogra a substitui, um dia de folga como cuidadora, um dia só para si em que deambula pela cidade de Kiev com o objectivo de se sentar por momentos numa igreja, um momento para chorar. É num desses dias que encontra aquela mulher bizarramente vestida, à saída do metro, gritando imprecações enquanto se desloca continuamente. Uma bieguni.

A história de Angelo Soliman, contada pela sua filha Josephine em cartas dirigidas ao imperador Francisco I da Áustria. Trazido do norte de África como escravo, as suas qualidades de pessoa encantadora, hábil político e homem muito inteligente, fizeram que se tornasse uma pessoa prestigiada na corte e digna de um lugar de destaque no seio das amizades mais íntimas do imperador. No entanto, esses atributos não obstaram a que no final da sua vida, devido ao exotismo da sua raça, o imperador tivesse dissecado e embalsamado o corpo de Soliman e o pusesse em exposição ao lado de animais selvagens. As cartas pungentes de Josephine Soliman rogam que o imperador seja sensível e lhe entregue o corpo do pai, para que lhe seja feito um funeral digno de um ser humano. No meio não deixa de pôr o dedo na ferida, ao referir o poder dos senhores e dos tiranos sobre os corpos dos seus servos.

Outra história belíssima é o reencontro de uma mulher com o antigo namorado que deixara na Polónia há muitos anos atrás. Os anos passaram, a distância também e tudo é estranho: ele, a cidade, a Polónia. Ele está à morte e ela vai numa “missão óbvia e asséptica, uma missão de amor”.

A história mirabolante de Chopin que tinha pedido para ser sepultado na sua terra. E assim, ele teve dois funerais: o primeiro na igreja da Madeleine e o segundo meses depois em Varsóvia. A irmã de Chopin conseguiu cumprir o pedido do irmão levando o coração dele para ser sepultado em Varsóvia.

Por fim, Kairos é a história de Karen e do seu marido – o professor – vinte anos mais velho que ela. Todos os anos é convidado a proferir palestras sobre a Grécia Antiga a bordo de um navio que percorre as ilhas gregas. Numa queda fatal, o derrame cerebral que lhe dita o fim da vida é descrito de forma extraordinária como se de um dilúvio de sangue se tratasse, o qual vai aos poucos apagando todos os traços, memórias e acontecimentos da vida do professor.

Tudo histórias à volta do corpo, dos corpos, dos defeitos físicos, das monstruosidades, dos detalhes dos corpos, das arrumações dos órgãos, da sua conservação, da plastinação. Viagens no interior dos corpos. Sempre as viagens.

Viagens, tudo viagens, lembrando que, logo no início, a narradora se apresenta como uma nómada, alguém que nunca aprendeu um ofício, que vive de biscates, que prefere a instabilidade e a precariedade, como um rio. É o que sai da norma, o incompleto e o estragado que a atrai.

Neste livro há pontos que surgem com alguma frequência como a paixão pala Anatomia como já referi, mas também, por exemplo, a presença das baleias e aqui não poderei deixar de recordar a história de Eryk que aprendeu a falar inglês na cadeia através da leitura de Moby Dick!

Este é pois um livro surpreendente em que apetece voltar atrás, reler uma passagem mais densa, voltar ao princípio e descobrir um aspecto para o qual não estávamos despertos/as numa primeira leitura, encontrando as linhas que cosem os retalhos, os pontos de encontro que casam um retalho com outro. Um “caos” onde nos organizamos, onde nos descobrimos, onde nos encontramos. Um livro a que se pode sempre voltar e onde se encontram detalhes com que nos identificamos como viajantes, como peregrinos, como amantes da viagem pelos livros.

3 de Junho de 2019

Almerinda Bento