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Lendo e escrevendo

Lendo e escrevendo

Viajar é preciso

29.04.19, Almerinda

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Depois de um conjunto de contos e romances da grande Maria Judite de Carvalho, sentimos a necessidade de viajar. MJC leva-nos à melancolia, à tristeza, aos retratos de mulheres mal-amadas e precocemente envelhecidas. Mas valeu bem a pena relê-la e descobrir outros ainda não lidos.

Estamos quase a chegar ao quinto mês do ano de 2019 e até agora ainda só li literatura escrita por mulheres. Muito bom. Cristina Carvalho, Chimamanda N. Adichie, Djamilia P. de Almeida, Ana Cristina Silva, Grazia Deledda e Maria Judite de Carvalho.

Agora, vamos viajar com Olga Tokarczuk. Como se lerá este nome polaco? Vai ser a próxima aposta do Clube de Leitura da Bertrand do Chiado e o livro tem o título "Viagens" e já me está a entusiasmar.  

"A minha primeira viagem, fi-la a pé pelos campos. Só deram pela minha ausência passado muito tempo, o que me permitiu percorrer uma boa distância. (...) Debruçada no topo do dique, fitando a corrente, dei-me conta de que, apesar de todos os perigos, tudo o que está em movimento é sempre melhor do que aquilo que está em repouso, que a mudança é mais nobre do que a estabilidade, que tudo o que estagna acabará por sofrer decomposição, degeneração e transformar-se-á em pó, enquanto aquilo que está em movimento consegue durar eternamente."

Ainda agora comecei e já estou rendida. Até breve.

Que melhores viagens do que aquelas que a literatura nos proporciona?

 

A Poesia está na rua

25.04.19, Almerinda

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25 de Abril

Quando me pedem que fale sobre essa data e sobre as impressões que essa data me sugere, invariavelmente trago o poema de Sophia de Mello Breyner Andresen e o quadro «A Poesia está na Rua» de Vieira da Silva. São as sínteses perfeitas, em palavras e em imagens , daquilo que vivemos nessa altura.

Era uma jovem de 23 anos, trabalhando num escritório de uma fábrica metalomecânica como tradutora, quando ocorreu o 25 de Abril.

As imagens mais fortes que tenho desses dias têm a ver com a rua, as vozes das pessoas que falavam umas com as outras mesmo não se conhecendo, nos transportes públicos, nos cafés, em qualquer sítio. Era a explosão da liberdade, dos sentidos, da alegria. Era o rio a transbordar.

A música e os poemas ligados às músicas são as marcas mais fortes que tenho. O Sérgio Godinho, o José Mário Branco, as músicas que ouvíamos e cantávamos até à exaustão. Mais tarde os poemas do GAC, canções revolucionárias que nos diziam tanto. Foi um tempo pouco dado à leitura, à literatura, era difícil estar muito tempo sentada a ler.

Mas lembro-me que houve um tempo em que devorei os três volumes de "Os Subterrâneos da Liberdade" de Jorge Amado. As viagens de comboio ajudavam a encontrar o tempo para a leitura e para apreender a vivência dura da militância em tempos de ditadura.

Foi um tempo memorável. Foi uma felicidade única poder viver esse tempo.

Viva o 25 de Abril.

Almerinda

25 de Abril de 2019

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Não esquecer Rana Plaza

24.04.19, Almerinda

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Hoje fiquei chocada quando, ao ir às memórias deste dia na minha página do facebook, percebi que esta imagem estava censurada com a indicação de ser uma imagem com "conteúdo gráfico ou violento" e portanto o "livro dos rostos" decidiu por mim e censurou-a.

Chocante, de facto. O rosto do capitalismo é chocante e nem precisamos de falar em capitalismo selvagem porque selvagem é uma redundância. O capitalismo é selvagem, PONTO!

Há seis anos, em Rana Plaza no Bangladesh, morreram mais de 1100 trabalhadores e trabalhadoras e os feridos foram mais de 2500, alguns com sequelas persistentes para o resto das suas vidas. Eram sobretudo mulheres de diversas fábricas de confecções que fornecem roupa para a H&M, Benetton, Mango, Zara e outras tantas lojas em todo o mundo. Apesar dos avisos de que o edifício apresentava sinais preocupantes de risco de colapso, as trabalhadoras/es foram forçadas a trabalhar com risco de serem despedidas/os.

Durante anos, activistas, sindicalistas e vítimas desta tragédia fizeram acções na rua, levaram as empresas responsáveis a tribunal, exigiram que os seus direitos fossem minimamente acautelados, já que os mortos nunca mais poderiam ver as suas vidas repostas. O capitalismo mata e não tem remorsos.
Neste dia, a Marcha Mundial das Mulheres, em todo o mundo recorda as vítimas de Rana Plaza através das 24 Horas de Solidariedade Feminista. Recordo, através de fotografias, a iniciativa de denúncia feita pela MMM - PT em 2015 na Rua do Carmo e no Chiado em Lisboa.

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As Palavras Poupadas, Maria Judite de Carvalho

22.04.19, Almerinda

 

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As Palavras Poupadas, Maria Judite de Carvalho, 1961

É impossível ficar indiferente à escrita de Maria Judite de Carvalho. Li alguns livros (crónicas e romances) dela nos anos 80 e mais tarde ainda um outro romance. Senti necessidade de a revisitar e ler mais, para confirmar o tom melancólico, mas sereno que eles me tinham deixado como marca. Confirmei a grande, enorme escritora da literatura portuguesa do século XX, injustamente pouco referenciada.

Há uma mágoa na sua escrita que nos atinge, porque é tão palpável, tão verdadeira. Num prefácio a “A Janela Fingida” – “Maria Judite de Carvalho: uma ternura magoada” – escreve Baptista Bastos: “De que falam todos os livros de Maria Judite de Carvalho? De pessoas, necessariamente. De uma lenta, insidiosa, obsidiante solidão. (…) Solidão, portanto, interpretada como violência imposta pela nossa sociedade; solidão como facto social. Solidão no realizado e no irrealizável, nos actos, no amor, na esperança, no sentido da vida, nas relações humanas, nos projectos. Solidão como sinónimo de falência. Eis porque nunca saímos «neutros» desta prosa neutra.”

Reli, pois, vários livros dela. Li outros pela primeira vez e saí exausta e magoada, mas continuando a colocar a escrita de Maria Judite de Carvalho num lugar bem elevado. E de tudo o que li dela, atrevo-me a escolher “As Palavras Poupadas” como o melhor entre os melhores, o mais perfeito e completo de entre os que li. Em torno da figura de Maria da Graça, que aos catorze anos é já uma pessoa triste, infeliz, sem mãe, que “fugia sempre a sentar-se perto de um espelho”, aos vinte e dois anos quando se apaixona por Claude, ou mais tarde já viúva e sozinha com o seu passado, são-nos apresentadas todas as personagens que a rodeiam: Claude o marido, Vasco a paixão da juventude e amante da madrasta, o pai, Leda a madrasta, Clotilde-minha-querida e Emília as amigas de Leda, Piedade a criada com o seu poder insidioso, o tio Rafael. De todas estas personagens, o tio Rafael só é referido uma única vez, mas vale a pena aqui transcrever como ele é descrito: “Ele era a gota de água no deserto e ao mesmo tempo a ovelha ronhosa da família, qualidades essas (ou defeitos, segundo o ângulo de visão) que se encontram frequentemente lado a lado. Um poeta, afinal, só mais tarde Graça o havia de compreender, um poeta que nunca escrevera versos e que a vida empregara traiçoeiramente (porque ela não gosta de poetas, a vida; «porque esse mandrião nunca quis estudar», dizia o pai) na casa Faria Benavente, Comissões e Consignações, da Rua dos Fanqueiros, onde, valha a verdade, raramente aparecia. Andava sempre sem dinheiro e cheio de dívidas, e o pai não lhe perdoava a sua total ausência de senso prático”.

A história de Maria da Graça é assim contada a partir da dança das personagens e de situações passadas, num puzzle extremamente bem articulado, numa escrita visual, inteligente, elegante, com diálogos convincentes, naturais e em que a ironia fina de Maria Judite de Carvalho, característica em todas as suas obras, tornou a leitura de “As Palavras Poupadas” difícil de interromper. O final, como geralmente acontece nos romances desta escritora, fica nas mãos do/a leitor/a, deixando-lhe a capacidade de participar e de dar o destino que bem entender às personagens que tão bem descreveu e de quem também em certa medida através de alusões ou pinceladas breves, deixou em aberto traços e caminhos por percorrer.

“As Palavras Poupadas” recebeu o prémio Camilo Castelo Branco.

Almerinda Bento

 

Silêncio

22.04.19, Almerinda

 

 

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Lembrei-me dele várias vezes. Foi há muitos, muitos anos. Chamava-me Silêncio. Vá-se lá saber porquê!

A Maria Judite de Carvalho não teve culpa, mas também ajudou um pouco... Uma semana em que conscientemente me remeti ao silêncio: do telemóvel, da casa dentro de casa, da casa do subúrbio, da vozearia, da indignidade, das leituras, das escritas. Nada teve a ver com a Páscoa, festa que nunca me disse muito. Foi outra coisa.

Até quando este silêncio?

 

Os Idólatras, Maria Judite de Carvalho

17.04.19, Almerinda

 

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Os Idólatras, Maria Judite de Carvalho, 1969

Sobre “Os Idólatras” escreveu Urbano Tavares Rodrigues numa nota biobibliográfica que esta foi a “sua única e excelente aventura no fantástico e na ficção científica”. Já Baptista Bastos no prefácio de “A Janela Roubada” intiulado «Maria Judite de Carvalho: uma ternura magoada» diz de “Os Idólatras” “lamentavelmente incompreendido por aparentemente inesperado”.

 “Os Idólatras” é constituído por 13 contos. Todos eles primorosamente escritos, mas tristes, premonitórios dum futuro assustador, onde as pessoas perderam a qualidade humana e onde a marca da solidão é comum. Logo no primeiro “A Floresta em sua Casa” as pessoas, face à quase inexistência de natureza e ao confinamento dos raros animais que ainda existem em espaços fechados, adquirem quadros a lembrar as pinturas exuberantes de Douanier Rousseau onde se escondem animais perigosos e ameaçadores é o retrato de uma sociedade geradora de loucos.

A fama que rouba a paz e a privacidade aos artistas idolatrados leva-os a esconder-se e a fugir do público sequioso e ávido é o tema do conto que dá o nome à colectânea de contos.

De novo a solidão, no conto “O meu pai era milionário”. Alguém com muito dinheiro que compra a sua “não morte” através da congelação do seu corpo. Cinquenta anos mais tarde, ao ser ressuscitada, enfrenta a solidão absoluta. Ninguém a ouve, ninguém a entende quando conta a sua história que começa por “o meu pai era um milionário”. Com efeito, a sua história não passa de um disco partido.

“Baía Triste” é a história de um astronauta que ficou no espaço. Para a mulher que não conseguiu reaver os despejos do marido, ele passa a ser o brilho de uma luz que se move no espaço.

Em “Casa de Repouso para Intelectuais e Artistas” a palavra “asilo” é proibida. Velhos artistas, outrora famosos, agora esquecidos, entretêm-se a lembrar o passado e a elogiar-se para receberem os elogios que o público já não lhes dá porque os esqueceu. “A velhice era uma coisa triste, mas não tanto como o esquecimento a que tinham sido votados. O escritor murmurava às vezes, de si para consigo: Dantes havia umas coisas chamadas literaturas… havia bibliotecas… havia livros…”

E por aí fora… Neste livro “Os Idólatras” a Terra não é um planeta habitável. Não há animais. Não há livros. Não há obras de arte. Não há gente. Há robots. Tudo está super organizado, desumanizado. As férias são passadas noutros planetas. As pessoas são ilhas. Não se amam. É a premonição dos quotidianos em função dos telemóveis, dos tablets, dos televisores, dos gadgets, da tecnologia. O tempo tem uma dimensão utilitária. Todo o tempo está compartimentado, agendado e não se pode perder e por isso as pessoas não conseguem viver com tempos mortos. Ficam infelizes, querem suicidar-se porque os tempos mortos não fazem sentido para elas. Mas no fim da vida, também há velhos que ainda querem comprar algum tempo para poderem viver aquilo que não viveram em vida…

Para terminar, o belíssimo “A Cidade do Êxito”. A senhora Bruce, que tinha sido uma famosa pintora de flores, é a única pessoa que não tem negócios relacionados com Marte. Vive numa casa que está a “estragar” a paisagem de arranha-céus, no meio de dois grandes edifícios como se fosse uma ilha. A sua casa térrea é um estorvo para os dois proprietários que tudo fazem para negociar com ela para que saia daquela casa e daquele sítio tão apetecível para que possam expandir os seus negócios. Ela sempre se recusa, o tempo passa e, entretanto, os vizinhos proprietários morrem, ela resiste e vive até aos 115 anos sem que ceda às pressões dos especuladores! Só a morte levará ao derrube e demolição da casa da senhora Bruce pelos funcionários camarários que no meio dos despojos levam quadros de flores como recordação.

Um livro de ficção que vale bem a pena ler. Maravilhosa e lúcida escrita.

Março 2019

Almerinda Bento

 

 

Quando o Parkinson nos bate à porta

11.04.19, Almerinda

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A doença de Parkinson fazia parte daquelas doenças de que não havia registo na família. Era, pois, uma coisa distante e é por isso, que só desde alguns anos eu assinalo este dia como o Dia Mundial do Parkinson.

Por volta de 2001começou-se a falar de Parkinson lá em casa quando ele bateu à nossa porta. Primeiro de forma muito ligeira, ténue, sem grandes marcas visíveis exteriormente. Foi a minha mãe, sempre atenta, quem primeiro achou que talvez fosse melhor levá-lo ao médico. Imagino que ele tenha resistido.

O tempo entretanto foi mostrando a todos nós e a ele naturalmente a degenerescência irreversível. Com períodos melhores e piores, com mudanças constantes na medicação. Estoicismo, muita coragem, exemplar também num processo em que o rodeámos do maior carinho, amor e atenção.

Não quero lembrar-me dessa fase. Aliás, punha e ponho sempre em contraponto o homem activo como torneiro mecânico exímio na sua profissão e que era procurado a nível nacional porque era o único que fazia determinadas peças para motores; o aeromodelista campeão nacional e ibérico em provas de planadores, de voo livre e circular; o entusiasta em conhecer e visitar as novidades e o que se passava no mundo. O seu sorriso lindo. A Expo que ele percorreu e visitou ao pormenor e metodicamente, todas as manhãs, usando os passes que lhe oferecemos deve ter sido uma última coisa que ele desfrutou plenamente antes de a doença se ter manifestado.

Quando o via sentado, na fase final da doença, lembrava-me das histórias que nos contava das brincadeiras com os irmãos e primos pelos campos das Mouriscas. Era então um menino magro e franzino mas que "saltava para cima do balcão a pés juntos"!

Neste dia 11 de Abril não posso deixar de pensar nele, noutras pessoas que entretanto conheço que padecem dessa doença e dos cuidadores e cuidadoras que vivem e se dedicam a minorar-lhes o sofrimento.

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Peace Basket

08.04.19, Almerinda

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Este cesto da paz é a peça mais significativa que trouxe do Ruanda.

Comprei-o numa associação que produzia pequenos cestos em sisal, réplicas dos cestos tradicionais - agaseke - usados nas casas do Ruanda para guardar e transportar alimentos e cereais, ou usados em cerimónias. Aquando do genocídio, esses cestos foram abertos, lançados ao chão e destruídos, pois poderiam ser usados como esconderijos para escapar à fúria assassina. 

Passado o genocídio, uma associação pensou que um meio de reconstruir o país e ajudar a aproximar as pessoas, neste caso as mulheres, que eram em muito maior número do que os homens, poderia ser pôr as mulheres dos que tinham sido mortos e dos que tinham matado e estavam presos, lado a lado a tecer estes pequenos cestos e a comunicar entre si, num processo de aproximação, de quebrar as barreiras entre hutus e tutsis e ajudar à reconciliação que era urgente e indispensável. Para além disso, a venda dos cestos da paz seria um meio de ajudar essas mulheres a comprar comida e medicamentos de que necessitavam, tornando-as independentes economicamente. Criaram-se cooperativas de artesãs em todo o país.

Assim, o papel dos cestos tradicionais ruandeses com uma função utilitária evoluiu com estes delicados cestinhos para um instrumento de reconciliação, autonomização das mulheres e suas comunidades e pacificação social. Chamaram-lhes Cestos da Paz. Sendo formados por duas partes - a base e a tampa - a ideia é que eles guardem todos os sonhos de paz que as mulheres têm e por isso não deverão ser abertos para que esses sonhos não fujam, não se percam! O padrão em zigzag representa duas mulheres de mãos dadas, significando a reconciliação, a unidade e a esperança num futuro de paz para o Ruanda. Em 2013 havia mais de quatro mil e quinhentas artesãs a fazer estes cestos da paz cuja venda para o estrangeiro estava a permitir a sobrevivência de comunidades em todo o território ruandês.

Estes cestinhos são um maravilhoso símbolo da capacidade de perdoar, da generosidade e compaixão  que as mulheres ruandesas mostraram ao mundo, encontrando formas simples de ultrapassar um momento terrível da sua história recente.

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Ruanda, como foi possível?

07.04.19, Almerinda

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Lembro aqui o Ruanda porque faz hoje precisamente 25 anos que se iniciou o genocídio. Entre 800 mil e um milhão de tutsis foram mortos pelos hutus, ou seja, estima-se que 70% da população tutsi foi dizimada.

A rivalidade entre hutus e tutsis era real e as condições objectivas vieram a ser cozinhadas ao longo de décadas, não só como reflexo do passado colonial belga, mas pelas políticas de desigualdade que cavaram fundo diferenças sociais que criaram o ódio entre as duas etnias. O discurso do ódio foi o instrumento que potenciou que a morte saísse à rua ao longo de três meses, sem que a chamada comunidade internacional interviesse ou fizesse parar uma das situações mais macabras que poderão ter ocorrido nos últimos anos, em que familiares, vizinhos e amigos deixaram de o ser e passaram a olhar-se como inimigos e alvos a matar. A regra foi matar tudo o que fosse tutsi, mas houve também casos de genuína humanidade e de coragem que se opôs a esta barbárie extrema. Vale a pena ver o excelente filme Hotel Ruanda.

Em Dezembro de 2004 estive em Kigali, dez anos depois do genocídio. A Marcha Mundial das Mulheres escolheu esse país de África para aí fazer a sua V Reunião Internacional e participei nesse encontro integrada na delegação da coordenação portuguesa para discutir e aprovar a Carta Mundial das Mulheres para a Humanidade. Em solidariedade com as mulheres ruandesas e de outros países vizinhos, assolados por guerras e conflitos onde as mulheres e as crianças eram das principais vítimas.

Desde então, pessoalmente, o genocídio do Ruanda passou a ter um significado maior, não só por ter estado naquele território, mas por ter contactado directamente pessoas (mulheres) marcadas pelo conflito. Conheci as ruandesas da Marcha que organizaram e participaram no Encontro; visitei associações apostadas em reconstruir as vidas de mulheres que ficaram emocionalmente mutiladas e destruídas pelas mortes dos seus entes queridos; visitei associações que trabalham os direitos das mulheres e que estão envolvidas no processo de reconciliação e de reconstrução do país a partir dos escombros do genocídio; visitei o Memorial do Genocídio. Um murro no estômago. Quando se sai depois de ver fotografias de crianças, peças de vestuário, brinquedos e objectos abruptamente largados, sons captados, frases, crânios e ossadas... temos de nos sentar e esperar que as pernas deixem de tremer. Impossível esquecer. Impossível ficar indiferente. Impossível sair igual ao que éramos quando entrámos.

Quando em 2004 o processo de reconciliação já estava em curso e nos parecia impossível haver perdão para tanta maldade, a verdade é que aquele povo martirizado percebeu que só se poderiam reerguer se encetassem um profundo trabalho de reconciliação. As mulheres tiveram nisto um papel fundamental e hoje elas desempenham tarefas e ocupam cargos políticos de grande relevância, sendo que o parlamento do Ruanda é dos mais paritários em todo o mundo. O povo ruandês percebeu que as etnias foram um factor decisivo no genocídio e por isso têm-se desenvolvido políticas de igualdade entre os cidadãos e retirou-se do discurso público referências às etnias geradoras de discriminações e ódios. Tanto trabalho feito. Tanto que ainda há por fazer, estou convencida.

Fico feliz por saber que o Ruanda continua a lutar para que aquele fatídico 7 de Abril de 1994 não mais se repita. Confio na maturidade daquele povo que aprendeu da pior maneira o que é o ódio entre as pessoas e que luta no dia a dia para que a paz seja duradoura.

Antes de 2004, ano em que pela primeira vez fui ao continente africano e a Kigali, o Ruanda era um país onde tinha acontecido um genocídio de que me lembrava por fotografias e notícias nos jornais. E o país onde foi rodado um filme maravilhoso - Gorilas na Bruma - que vi várias vezes. Não há como ter a possibilidade de conhecer os sítios ou viver as situações, para que elas passem a fazer parte da nossa pele e do nosso coração. Hoje não poderia deixar de lembrar Kigali e as pessoas que conheci durante os dias em que lá estive há 15 anos.

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Constituição, Padre Max e Maria de Lurdes

02.04.19, Almerinda

Esta efeméride tem 43 anos.

"A 2 de Abril de 1976 foi aprovada a Constituição da República Portuguesa, com os votos favoráveis da UDP, do MDP-CDE, do PCP, do PS e do PSD e com os votos cont...ra do CDS.
A Constituição é o texto primeiro da nossa Democracia, consagrando Direitos e Garantias no acesso a um trabalho com direitos, a uma educação e uma saúde públicas, a um sistema nacional de segurança social, na igualdade perante a lei. É também uma das Constituições mais solidárias no espaço europeu e mesmo após as suas sete revisões, mantém-se um documento progressista no espectro político contemporâneo.

Hoje, defender a Constituição não é um ato nostálgico ou de demonstração de amor ao ano de 1976, mas é, acima de tudo, defender os direitos sociais e um país mais justo e solidário, onde o trabalho não é instrumento do capital." Estas palavras fui roubá-las ao Luís Monteiro, porque achei que eram perfeitas e estava lá tudo o que eu queria dizer.

Mas é também a efeméride dum dia que não podemos esquecer e que é a marca da direita e da extrema direita, da violência extrema que surgiu naquele dia em que os fascistas e os saudosistas do salazarismo atacaram quem, no terreno, lutava pela democracia e por Abril. O Padre Max e Maria de Lurdes foram assassinados à bomba no mesmo dia em que era aprovada a Constituição da República Portuguesa: 2 de Abril de 1976.

 "É... mais fácil um camelo passar no buraco de uma agulha do que um rico entrar no reino dos céus" - "Servir o Povo e nunca se servir dele" foram palavras emblemáticas do padre Max num comício no Coliseu de Lisboa em que participou.

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