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Lendo e escrevendo

Lendo e escrevendo

Salvação, Ana Cristina Silva

26.02.19, Almerinda

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Salvação, Ana Cristina Silva, 2017

Este é o quinto livro de Ana Cristina Silva que leio, onde mais uma vez a autora revela a sua mestria em analisar e transmitir-nos estados de alma das personagens que cria. Desta vez, um escritor e o seu sofrimento pela perda da mulher, vítima de doença. A incapacidade de evitar-lhe a morte e de prever que a doença seria irreversível geram nele remorso e um profundo abatimento. Agarrando-se ao último pedido formulado pela mulher – que escrevesse um novo romance – somos levados ao longo de quinze meses, tempo que o narrador leva a escrever o livro, a acompanhar o seu luto. Criando uma personagem – David Negro – e uma época – séculos XVI e XVII em Portugal e na Europa – o escritor narrador vai transpor para a escrita os seus sentimentos de impotência e de perda definitiva da mulher através da personagem criada, ao mesmo tempo em que traça um paralelo entre duas épocas da história da humanidade em que a intolerância e o fanatismo, em nome de deus – Cristo, Moisés ou Maomé – e das religiões, persistem de forma feroz. Embora inicialmente seja para ele vaga e incerta a forma como o livro irá evoluir, no entanto, a ideia do tema é clara desde o início: Deus e os seus crimes.

David Negro, com mais de 90 anos, a viver em Amesterdão e sentindo que a sua vida está a chegar ao fim, escreve uma longa carta à filha que deixou quando ela tinha nove anos, forçado a fugir de Portugal por ocasião da perseguição aos cristãos novos pelo Santo Ofício. Não tendo conseguido salvar a mulher, expressa nessa carta os sentimentos de culpa, remorso e cobardia e pede à filha que o perdoe, embora duvide que a carta que lhe está a escrever, alguma vez lhe chegue às mãos e mesmo que a consiga escrever até ao fim, dado o seu precário estado de saúde. Tendo passado por Paris quando as ideias de Lutero e de Calvino geram acesos debates teológicos entre cristãos e quando acabara de ocorrer o terrível massacre de S. Bartolomeu, em que protestantes foram massacrados pelos soldados do rei, parte para Hamburgo onde está instalada uma importante comunidade de cristãos novos fugidos de Portugal. Aí, juntamente com Rodrigo de Castro, outro médico que havia estado ao serviço do rei Filipe II de Espanha, mas que também fora obrigado a fugir para Hamburgo, tentam, com os parcos conhecimentos de medicina à época, responder à terrível calamidade de peste que dizimou milhares de pessoas. Segue-se Amesterdão, onde toma conhecimento de Uriel da Costa um homem de pensamento livre, crítico das religiões, proscrito pela comunidade e pelos fanáticos liderados pelo rabino. Perseguido pelos judeus sefarditas, açoitado e humilhado publicamente, acaba por encontrar no suicídio a única saída para o seu sofrimento moral.

Ao mesmo tempo em que o narrador vai avançando no seu livro, o tempo vai fazendo o seu trabalho, não apagando o desgosto, mas dando-lhe novos contornos. “O sofrimento do luto é assim: um longo corredor que não é possível passar a correr.” Da fase inicial de corte e alheamento com o mundo circundante, de desinteresse pela vida, até um dia em que ao abrir a televisão se depara com o atentado de Paris. Atenta no discurso dos fanáticos do Daesh, em tudo igual ao dos frades dominicanos dos autos-de-fé do tempo de David Negro. Mas agora, quatro séculos depois, a intolerância e o medo abrem as notícias dos telejornais e fazem manchetes nos jornais: Paris, Nice, Istambul… em nome de um deus.

Enquanto vai escrevendo o seu livro, o narrador apercebe-se de que o peso da ausência da mulher deixa de ser tão presente e obsessivo e culpabiliza-se, como se o seu luto estivesse a esmorecer e tal fosse sinal de menos amor pela mulher, de traição à sua memória. Sofia, a mulher morta, tinha tido a clarividência que só através de um novo livro, o marido conseguiria sair da depressão do luto. Tal como a longa carta de David Negro à sua filha Inês da Paz é um “livro de memórias” e funciona como uma possível forma de quebrar uma ausência não desejada e uma espiação por um laço que se quebrou, este livro é afinal uma salvação para ambos: escritor e personagem.

A escrita como salvação. O trabalho como salvação.

Um livro excelente, cuja leitura aconselho vivamente.

 

 

Luanda, Lisboa, Paraíso, Djamilia Pereira de Almeida

20.02.19, Almerinda

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Luanda, Lisboa, Paraíso, Djamilia Pereira de Almeida, 2018

A belíssima capa deste livro, o título e uma sessão em qua Djaimilia Pereira de Almeida falou sobre a sua obra foram os “ingredientes” que me atraíram para comprar “Luanda Lisboa Paraíso”.  A doçura da voz e a riqueza do discurso da jovem autora angolana nesta sessão moderada por Anabela Mota Ribeiro fui encontrá-las ao longo das pouco mais de duzentas páginas do livro.

Um livro muito belo, cheio de subtilezas, de figuras de estilo na sua prosa poética. Uma história com vidas tristes, sofridas, com muitos silêncios ou com palavras que não são ditas, onde a esperança e o sonho persistem, mesmo quando a pobreza, a solidão e o desenraizamento são a marca de que é feita a vida das personagens.

Cartola e Aquiles partem de Luanda a caminho de Lisboa para um tratamento a um defeito de nascença no calcanhar de Aquiles. Lisboa é a terra com que o pai Cartola sonha, imaginada em livros, mapas e postais; para Aquiles, o filho, é terra de salvação de um defeito que carregava, colado ao nome e com o qual era alcunhado de “o coxo” ou o “Botinha” entre os colegas da escola. Desde o início que tudo aponta que será uma viagem só de ida o que é percepcionado por Glória, a mãe, paralisada e esquecida numa cama, lembrando Samsa, o insecto de “A Metamorfose” de Kafka. “Glória fechou os olhos, apertou a camisa de noite contra o peito e disse em voz alta «até amanhã, Papá» sem se permitir soltar uma lágrima, mas pressentindo também que vira o marido pela última vez.”

Lisboa é afinal uma terra onde pai e filho andam à deriva, sentindo-se estrangeiros, perdidos. A fragilidade de Cartola “caminhava sem referências”  é sentida pelo filho que o acha mais pequeno, menos firme, mais envelhecido. Pai e filho pouco comunicam, cada um encerrado no seu mundo, frustrados os seus sonhos de um futuro melhor. Para Cartola, perdido numa Lisboa estranha que o enjeitava, era no cemitério dos Prazeres que encontrava o sítio onde se sentia entre iguais. Nas cartas e nos telefonemas a Glória, Cartola fantasia em palavras os sonhos que não consegue concretizar, são a idealização de um sonho impossível. Em Luanda, a escassez, a pobreza e a guerra civil são mascarados com palavras doces e pedidos simples que Glória faz ao marido, projectando num futuro risonho as memórias de tempos felizes quando eram jovens.

A Quinta do Paraíso, a caminho de Caneças é a saída possível depois de uma história de pagamentos em atraso e dívidas na pensão Covilhã. As viagens diárias do bairro para a obra são as rotinas de Cartola para quem a dureza do trabalho o faz sentir cada vez mais velho e onde Aquiles é “o coxo da obra” ou “o preto coxo”. Paraíso, mas podia ser a Jamaica, é o lugar onde diariamente se descansa o corpo depois da jornada de trabalho dura na obra. As dores do corpo são mitigadas por uma refeição melhorada quando ainda há dinheiro, ou por uma conversa à volta duma fogueira, pautada por umas anedotas e lembranças da terra longínqua, ou pela rifa do cabaz de Natal que saiu a Cartola. O vizinho Pepe, o taberneiro galego vai ser a amizade que vai nascer na relação entre duas solidões. E que se vai reforçar quando ambos constróem a barraca que ardeu numa noite. A construção da “nossa casinha”, como lhe chamam,  passa a ser o objectivo que vai dar sentido às suas vidas e motivar os mais novos – Aquiles, Amândio e Iuri.

Achei este livro tão lindo, tão dramático, tão sentido, para nos dar a entender melhor a vida de tantos cidadãos imigrantes que um dia acreditaram num paraíso em Portugal ou na Europa, que foram obrigados a fugir da fome ou duma guerra civil sem sentido, que aqui vieram procurar respostas para uma saúde que não dispõem nos seus países.

Com a força das palavras que Djaimilia consegue manejar com tanta mestria e sensibilidade.

 

O blogue de Ifemelu

19.02.19, Almerinda

"Ao fim da tarde desse dia, Ifemelu escreveu um longo e-mail a Wambui sobre a livraria, as revistas, as coisas que ela não dizia a Curt, coisas por dizer e por acabar. Foi um longo e-mail, a escavar, a questionar, a desenterrar. Wambui respondeu dizendo: «Isto é tão sentido e tão verdadeiro! Mais pessoas deviam lê-lo. Devias criar um blogue.»

A ideia dos blogues era nova, não lhe era familiar ainda. Mas contar a Wambui o que lhe tinha acontecido não lhe bastava; ela ansiava por outros ouvintes e ansiava por ouvir as histórias de outras pessoas. Quantas outras pessoas optariam pelo silêncio? Quantas outras pessoas se teriam tornado negras na América? Quantas teriam sentido que o seu mundo estava envolto em gaze? Ifemelu acabou com Curt algumas semanas depois, inscreveu-se no WordPress e nasceu o seu blogue."

in "Americanah" de Chimamanda Ngozi Adichie

Americanah, Chimamanda Ngozi Adichie

19.02.19, Almerinda

Americanah, Chimamanda Ngozi Adichie, 2013

Já conhecia Chimamanda de uma TED talk em que participou a falar sobre o perigo da história única e também da leitura de “Todos devemos ser Feministas”. Quer um quer outro deixaram-me maravilhada. Desta vez, “Americanah” um volumoso romance em que a personagem principal é uma jovem nigeriana e o seu percurso de vida na Nigéria, nos Estados Unidos e depois de novo na Nigéria. Mas é muito mais do que um romance. É, sobretudo, uma reflexão profunda sobre as sociedades nigeriana e norte americana das últimas décadas. Sobre o estado do mundo. E sim, “Americanah” tem a ver com a cor da pele, mas não é um livro a preto e branco.

Assolada por guerras civis e ditaduras, a Nigéria era para muitos jovens estudantes um país sem futuro, sem perspectivas. Os Estados Unidos da América representavam o sonho de aí poderem estudar e viver.  Como dizia a mãe de Obinze, o seu jovem namorado, quando Ifemelu se foi despedir dela “A Nigéria está a enxotar os seus melhores recursos.” Só que quando chega à “gloriosa América”, Ifemelu descobre que a realidade é muito diferente daquilo com que sonhara quando vivia em Lagos. Descobre uma sociedade de consumo, com falsas “necessidades” e “escolhas” que são impostas, nos supermercados, nos hábitos alimentares e de vida. A linguagem cheia de tiques, as palavras fetiche que as colegas usavam tudo isso foi um choque inicial, uma perplexidade, mas a que se foi acostumando. Ifemelu sempre fora considerada insubmissa e crítica e tinha esse filtro que, apesar das transformações a que vai ser sujeita, a levam a preservar a sua identidade, resistindo ao sotaque americano, investindo na leitura e fazendo amizade com a Associação de Estudantes Africanos que a vai ajudar a detectar as diferenças dos relacionamentos dos americanos, quando se trata de afro-americanos ou africanos. Ifemelu percebeu como os Americanos olhavam com comiseração para os Africanos, do alto da sua superioridade. Esta aprendizagem foi relevante e levou-a a iniciar um blogue sobre “estilos de vida”, resultado do que ia observando, mas cujo objecto era o tema “raça”. Esse blogue ajuda-a a sobreviver na América, ultrapassando os momentos mais difíceis, a solidão e torna-se famoso pela acutilância. “Eu sou de um país onde a raça não era um problema; não pensava em mim própria como negra, só me tornei negra quando vim para a América”, escreve num post. O blogue de Ifemelu é irónico sobre os tiques racistas e/ou politicamente correctos dos americanos brancos para com os africanos, catalogados como uma entidade única. No fim de cada post, faz sempre um apelo a que os seus leitores se pronunciem e façam sugestões.

Os cerca de treze anos que Ifemelu viveu nos EUA permitiram-lhe ter vários relacionamentos e conviver com diferentes tipos de pessoas, sobretudo com uma elite intelectual ligada à universidade, também ela com códigos, linguagem e registo fechados, um manancial para o seu blogue.  Vive intensamente o período eleitoral da campanha à presidência dos Estados Unidos que desemboca na eleição de Barack Obama. Inicialmente adepta de Hillary Clinton, a possibilidade de a América poder vir a ter um negro como presidente, leva-a a apoiar a campanha de Obama. Uma experiência única. Uma felicidade indescritível.

Mas a sua bolsa de investigação terminou e o apelo do regresso à Nigéria é mais forte. A sua terra natal, entretanto, transformara-se e, tal como anos antes ela se tinha adaptado à sociedade norte americana, agora era preciso adaptar-se à Nigéria actual. Uma sociedade de novos ricos, inundada por telemóveis, seduzida pelo que é estrangeiro, bajulando quem é poder, onde as igrejas manipulam os incautos e onde as aparências é que contam. As suas antigas amigas do secundário só falam em casamentos. Por norma “uma mulher não se casa com o homem de quem gosta. Casa-se com o homem que melhor a possa manter”. O desconforto de Ifemelu fá-la balançar entre a saudade de uma América organizada a que se habituara e a saudade duma Nigéria que tinha deixado quando jovem estudante universitária. O seu primeiro emprego numa revista que não a satisfaz leva-a a entusiasmar-se com a ideia de criar um novo blogue sobre a realidade nigeriana, sobre as pessoas concretas e seus problemas, sobre saúde, religiões, igrejas. Será “As Pequenas Redenções de Lagos”.

“Mesmo assim, estava em paz por estar em casa, por estar a escrever o seu blogue, por ter descoberto Lagos outra vez. Sentia-se por fim completamente realizada. “

  • “Então, ainda tens um blogue?
  • Ainda.
  • Sobre raça?
  • Não, só sobre a vida. A raça não resulta realmente aqui. Sinto que saí do avião em Lagos e deixei de ser negra.
  • Aposto que sim.”

 

 

Para além de Ifemelu, Obinze é a segunda principal personagem de “Americanah”, mas a tia Uju, Dike o seu filho e a mãe de Obinze são personagens muito interessantes. Obinze esbarra com as restrições de acesso a um visto para ir para os Estados Unidos em sequência dos acontecimentos do 11 de Setembro e tem de se virar para Inglaterra. “As pessoas estavam famintas de escolha e de certeza” e imigravam não apenas para fugir à guerra ou à pobreza. Mas, em Inglaterra, apesar da sua formação universitária, ele é um imigrante ilegal, é como se não existisse, pois não tem um número na segurança social que lhe permita trabalhar e viver. O tema da imigração está na ordem do dia e para Obinze a vulnerabilidade é o seu dia-a-dia. “A classe neste país está no próprio ar que as pessoas respiram.” O mundo paralelo é o que permite sobreviver e isso significa fazer negócio com um nigeriano que lhe passa o seu cartão, deixando de ser Obinze para passar a ser Vincent, ou estabelecer contactos com angariadores angolanos que lhe arranjem casamento com uma jovem naturalizada inglesa, para que assim ele possa obter cidadania europeia.

O racismo, difuso ou explícito, a imigração, a corrupção dos governos, e apesar de tudo isso, a capacidade de resistência e resiliência dos seres humanos são alguns dos muitos temas que Chimamananda Ngozi Adichie coloca neste livro. Ifemelu regressou ao seu país natal, transformada, mas não perdeu a sua identidade e as suas raízes. Ifemelu não é uma americanah típica.

“Americanah” é o livro de uma autora com fortes convicções e muito inspiradora.

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Mais um desafio...

19.02.19, Almerinda

Blog? Mas blog para quê?

A resposta às insistências da Helena para que criasse um blog para escrever os meus textos, sobretudo as minhas apreciações às leituras que ia fazendo. Eu até já colaborava há anos num outro blog da Cristina, para além do que ia postando na minha página de facebook. Parecia-me uma redundância, um sem sentido. Talvez assim os textos ficassem mais arrumados, mais fáceis de encontrar do que num dos dossiers que guardo na varanda!

Afinal foi uma nigeriana - Chimamanda Ngozi Adichie - que através da leitura de "Americanah" e da sua personagem Ifemelu (a Blogger) que me deu o empurrão para estar hoje aqui a escrever esta introdução ao meu blog. O blog, melhor, os blogs ajudaram-na a encontrar o seu caminho e a sentir-se realizada, primeiro nos Estados Unidos e depois na sua Nigéria natal.

"Lendo e Escrevendo" vai ser sobre livros, mas também artigos, notícias, filmes, exposições, viagens, conversas, sobre a vida que for captando, lendo e vivendo.

Obrigada às minhas amigas que me incentivaram e me ajudaram a abrir esta nova página na minha vida: Helena, Albertina, Cristina Duarte, Cristina Delgado, Luísa Bernardo e Chimamanda.

ALB

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